Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A carta do suicida

A tragédia ocorrida dia 7 de abril mobilizou a sociedade brasileira em múltiplos sentidos. O fato de ter ocorrido numa escola e contra estudantes deve mobilizar a nós, educadores, para que possamos “acordar os homens e adormecer as crianças” (Drummond): buscar a fundo as causas sem detonar paranoia. Urge que o gesto do ex-aluno Wellington Menezes de Oliveira seja decifrado, senão corremos o risco de sermos devorados por ele.

A carta a nós deixada pelo agressor ajuda a erguer parte do véu de horror que recobre seu gesto homicida e, a seguir, suicida. Compreender a mente desse jovem e as múltiplas relações que o moldaram certamente contribui para ações preventivas adequadas.

Inicialmente é preciso não esquecer que a carta foi escrita antes dos atentados, embora leiamos seu texto após os acontecimentos. Assim, vemos que o jovem de 23 anos já contava com a própria morte, pois determinou como seu corpo deveria ser preparado e definiu onde desejava ser sepultado e a destinação de sua casa. Os verbos da carta aparecem no tempo passado, mas se referem a um momento futuro, o que sugere uma pretensão de controlar ao menos seu derradeiro instante: ao sair de casa, naquela manhã, Wellington provavelmente estava seguro de que não viveria até o final do dia.

O documento pode ser dividido em quatro partes. Na primeira, o autor dá instruções detalhadas sobre como embalar seu corpo; a segunda parte refere-se ao sepultamento e às encomendas conduzidas por “um fiel seguidor de Deus”; na terceira, ele destina sua casa em Sepetiba para instituições que cuidam de animais abandonados; na quarta parte, negocia seu pedido, invocando o argumento de que, se seus pais desejavam passar o imóvel para o nome dele, então avalizavam essa doação.

Contradição com valores religiosos

Os verbos também revelam as intenções de Wellington. No início, ele se apresenta autoritário, confiante, ao afirmar que os impuros deverão saber que não poderão tocar seu cadáver sem luvas e, só após o envolverem no lençol que ele mesmo providenciou, poderão colocá-lo no caixão. A seguir, baixa o tom e pede, “se possível”, para ser sepultado ao lado de sua mãe adotiva, Dicéa (cita o nome completo, para não haver dúvidas). Wellington retoma o tom imperativo ao querer a doação da casa, mas logo pede “por favor” aos familiares que tenham o bom senso de cumprir seu pedido. Esse fluxo de tonalidades provavelmente mostra que acerca de algumas coisas (sua morte) o jovem pensa ter controle; sobre outras ele sabe que depende da decisão de terceiros.

Em várias passagens, a carta assume, nos símbolos e nas referências, um tom religioso, provavelmente oriundo de sua formação. Exige pureza, sobretudo sexual, pois seu sangue e ele mesmo, que se diz virgem, não devem ser tocados por impuros. Seu ritual fúnebre deveria imitar o relato da preparação do corpo de Jesus, lavado e envolvido num sudário; outra referência seria o dilúvio, em que Noé abriga animais em sua arca, enquanto a humanidade se afoga. Invoca ainda a consideração aos pais, talvez eco de um culto aos antepassados. Todo o texto aparece embalado em estilo apocalíptico, mais visível nas exigências e ameaças, na referência à segunda vinda de Jesus que o despertará “do sono da morte para a vida eterna” e na menção a fornicadores, adúlteros e aos que perderam “suas castidades” antes do casamento.

No entanto, pode-se argumentar que só na aparência essa carta tem algo de religioso, pois manifesta profundas contradições. Ao penetrar profundamente o corpo e o sangue das virgens; ao surpreender mortalmente adolescentes mais indefesos que os animais que lhe suscitam compaixão; ao não levar em consideração a dor dos pais de suas vítimas, Wellington contradisse na prática os valores que proclamou numa linguagem aparentemente devota. Ao mencionar apenas vagamente seu ato (“o que eu fiz”), a tragédia que estava prestes a detonar, esse jovem infeliz, e causador de tão funda infelicidade, parece que há muito estava incapacitado para o contato com o mundo e com as pessoas além dele mesmo.

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Professor titular do Departamento de Ciência da Religião da PUC-São Paulo, teólogo e editor da Olho d’Água