A tragédia na escola do Realengo (Rio de Janeiro) – 12 crianças mortas a tiro por um psicopata –, justamente pelo horário em que ocorreu, permitiu à TV dar no público e nos jornais em papel o chamado “coice de mula”, a síntese da violência máxima fixada no imaginário popular. As pessoas que se postaram à frente da televisão na quinta-feira à noite (7/4) tiveram a sensação de quem leva um golpe forte o suficiente para provocar lágrimas e profunda consternação. Na cobertura do episódio, com mais de dez horas para preparar a edição dos jornais noturnos, a TV não deixou pedra sobre pedra e conseguiu realizar com êxito o que os jornalistas chamam de cobertura “acachapante”.
Golpe no público, emocional, contundente; e golpe nos jornais em papel, que iriam circular cerca de dez horas depois dos jornais televisivos noturnos, ou quase 24 horas após o incidente no Realengo. O que sobrou de inédito para os jornais dessa cobertura ? Pouca coisa, talvez apenas as últimas informações sobre a situação das crianças feridas em hospital.
Os jornais, contudo, circularam na sexta-feira como se não tivessem sentido o golpe. Noticiaram o episódio em manchetes de letras garrafais e nada acrescentaram. Ainda na quinta-feira à noite, quem sintonizasse na Globo News veria uma entrevista alentada, consistente, com analistas e psiquiatras tentando desvendar a motivação do rapaz que empreendeu todo aquele barbarismo.
O difícil é aprofundar a cobertura
O episódio do Realengo teve também características que corroeram as possibilidades dos jornais. Não foi apenas o horário em que ocorreu, distante demais dos horários de circulação do papel. Impôs também restrições à divulgação de fotos, por razões óbvias. Em coberturas iguais à da tragédia climática que se abateu sobre as cidades serranas do Rio de Janeiro no início do ano, ou no confinamento daqueles homens nas minas de Atacama, no Chile, sobra para os jornais em papel a ampla divulgação de fotos – imagens fixadas e contextualizadas – em contraponto às imagens fugidias e em movimento da TV. No caso de Realengo, não! As fotos das vítimas já nasceram proibidas.
Sobra ainda um outro fator, de ordem psicológica, contra os jornais: quem viu televisão na noite de quinta-feira amanheceu de ressaca na sexta-feira, ainda atordoado pelo golpe recebido na véspera. Como mero leitor, nem quis olhar para as imagens – imagens do entorno da escola e seus personagens dramáticos. Tive uma rejeição natural à dose dupla de uma notícia terrível igual a essa. Passei rapidamente os olhos pelas páginas para tentar identificar algo novo na cobertura e saltei para outros cadernos na minha demorada e assídua leitura matinal.
O episódio mostra também o quanto é desafiadora a obrigação imposta aos jornais de se distinguirem dos outros meios, uma obrigação que, aliás, se impõe a cada dia com mais força. Repetir tudo aquilo que a TV e a internet divulgou na véspera, é fácil. Diria que os jornais têm, inclusive, mais tempo de preparar suas edições que os outros meios. O difícil é aprofundar a cobertura e apurar na extensão do ponto onde os outros meios tiveram de interromper a cobertura. Alguém já disse que a TV desperta o apetite do consumidor de informações e os jornais têm por obrigação saciá-lo.
Subsídios para reflexão
Há, sim, no caso do Realengo, perguntas que ficaram sem respostas, pois o pressuposto é que o número de vítimas vai além de mortos e feridos com gravidade. Envolve todas as crianças e professores da escola – e familiares – que direta ou indiretamente viveram as ameaças da quinta-feira. Mais do que 20 crianças e famílias atingidas, temos toda uma escola e uma comunidade no Rio de Janeiro traumatizadas num tanto que vão precisar de assistência psicológica de longo curso. As autoridades já pensaram nisso?
São, enfim, subsídios para reflexão de todo jornalista que se veja na responsabilidade de pensar o jornalismo nestes tempos bicudos, em duplo sentido.
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Ex-diretor da Agência Estado e da Gazeta Mercantil