A notícia estava no jornal O Dia online na manhã de sábado (4/6): “Polícia Militar invade quartel ocupado por bombeiros no Centro”. Na abertura, relata-se a invasão, pelo Bope, do quartel do Comando-Geral dos Bombeiros, na Praça da República, no Rio, ocupado desde a noite anterior “por dezenas que manifestantes que reivindicavam aumento salarial, vale-transporte e melhores condições de trabalho. Para entrar no local, a PM usou bombas de efeito moral e de gás lacrimogêneo. Pouco antes, foram ouvidos barulho de disparos de armas de fogo vindos do interior do quartel”. Clique aqui para ler a notícia completa.
Pode chocar, mas insubordinações na esfera das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros Militares estão longe de ser novidade no Brasil. A mídia noticia uma de cada vez, quase sempre sem oferecer contextualização histórica. Como se fosse normal quebrar a disciplina em organizações baseadas na hierarquia. E que, mais grave, fazem parte dos setores estatais aos quais é atribuído o exercício do monopólio da força.
Celeiros de insubordinações
Aqui vão alguns exemplos, sem remontar à participação de tropas estaduais em movimentos como os de 1930 e 1932, quando foram protagonistas, nem descer a casos bárbaros, como o do 15º Batalhão de Polícia Militar de Duque de Caxias, Baixada Fluminense, onde, em reação à disciplina rígida adotada por um comandante, policiais jogaram duas cabeças humanas por cima do muro do quartel e cometeram a “Chacina da Baixada”, em agosto de 2005. São deixadas de lado ações similares das Polícias Civis e da Polícia Federal. Contribuições de leitores para enriquecer este breve painel serão bem-vindas.
Frequentemente, os episódios têm relação com interesses corporativos. Quase sempre, a base da insatisfação são injustiças salariais, funcionais ou disciplinares. Em alguns casos, há interesses criminosos associados aos protestos. Em outros, posições ideológicas da família da “linha dura”. Raramente, concepções democráticas. É comum candidatos a cargos eletivos emergirem de rebeliões. Sempre é necessário ressalvar que, com raras exceções, os episódios relatados envolvem uma parcela, não a totalidade da oficialidade e dos efetivos dessas corporações.
Em março deste ano, houve tentativa de intimidar o jornal O Popular, de Goiânia, após a publicação de graves denúncias contra um grupo de extermínio formado por oficiais e soldados da Polícia Militar (ver “O Popular e a Polícia −Barra-pesada no jornalismo goiano”, de Cileide Alves). Os acusados seguem presos e a “Rota” goiana continua aquartelada.
Golpe de 1964
As Polícias Militares, em vários estados, foram coadjuvantes importantes dos golpistas que derrubaram o presidente João Goulart, em abril de 1964. É uma forma de insubordinação subalterna à sublevação vitoriosa dos chefes militares da época, mas nem por isso menos relevante. Essa história não está devidamente registrada na bibliografia sobre o golpe. Baseio-me em relato de um amigo que era na época tenente da PM-RJ (antes da fusão com a Guanabara, imposta em 1975) e participou dos deslocamentos de tropas.
Em Minas Gerais, o governador Magalhães Pinto, às vésperas do movimento, “reorganizou seu secretariado com o objetivo de garantir a unidade política do estado e incorporar figuras de expressão nacional capazes de agir em todas as frentes durante o embate que se iniciava. Favorável à derrubada de Goulart, Afonso Arinos [de Melo Franco] foi nomeado secretário do governo mineiro e encarregado de negociar o reconhecimento internacional do estado de beligerância caso a rebelião se transformasse em guerra civil prolongada. Esse passo seria importante para dar cobertura ao fornecimento de petróleo e material bélico norte-americano às áreas sublevadas, o que não chegou a ocorrer em virtude da rápida vitória obtida pelos revoltosos” (cf. CPDOC-FGV, verbete “Afonso Arinos”). A PM-MG, sob o comando do coronel José Geraldo, recebeu a incumbência de, caso necessário, ocupar Brasília. Não foi preciso.
Édson Luís de Lima Souto
A participação antidemocrática das PMs durante o regime militar não continha nenhum componente de insubordinação, evidentemente. As PMs foram mobilizadas para se confrontar nas ruas com estudantes e outros segmentos que se manifestavam contra a ditadura.
Em 28 de março de 1968, por iniciativa própria –o governador era Negrão de Lima, que jamais daria essa ordem −, um capitão à frente de pelotão de choque da PM-GB iniciou tiroteio no qual foi morto o estudante Édson Luís de Lima Souto, que se juntara a uma manifestação dos usuários do restaurante estudantil do Calabouço, no centro do Rio. O enterro de Édson Luís foi a primeira grande manifestação popular daquele ano. Em Goiás, dias depois, a PM abriu fogo contra estudantes que protestavam contra a morte no Rio. Foi morto Ivo Vieira.
Santo Dias
Não é preciso sublinhar o papel da PM na repressão às greves do ABC paulista de 1979, lideradas por Luiz Inácio da Silva. O episódio mais violento foi a morte do operário e ativista católico Santo Dias da Silva, com um tiro nas costas, atribuído ao soldado PM Herculano Leonel, em 30 de outubro de 1979.
O assassinato pelas costas não fazia parte das instruções dadas aos repressores. Politicamente, produziu a ampliação do apoio ao movimento grevista. O então arcebispo de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns, disse em discurso na missa de corpo presente: “Quase nada está certo nesta cidade enquanto houver duas medidas: uma para o patrão, outra para o operário.”
O PM foi condenado a seis anos de prisão em 1982. Recorreu, e o processo foi arquivado. Havia sido inocentado por um tribunal militar.
Governador cercado
No dia 1 de abril de 1980, uma terça-feira, 600 oficiais da PM e do Corpo de Bombeiros do novo Estado do Rio tomaram o Palácio Guanabara e sitiaram o gabinete do governador, Chagas Freitas. Exigiam que seus soldos fossem equiparados aos dos oficiais das Forças Armadas. Foram mandados à Secretaria de Segurança, de onde centenas voltaram ao Guanabara com ânimo mais inflamado. Chegaram a revistar um carro por suspeitar que Chagas estivesse tentando sair escondido do palácio. O governador acabou recebendo uma comissão. Na quarta-feira, o comandante da PM mandou prender quatro oficiais (um deles, o major Paulo Ramos, seria eleito depois deputado federal –dois mandatos entre 1987 e 1994 –e deputado estadual –está no terceiro mandato desde 1999). Na quinta-feira, centenas de oficiais se aglomeraram em frente ao portão de entrada do Quartel-General da PM, no Centro do Rio. No dia 7 de abril, Chagas Freitas concedeu aumento de vencimentos aos oficiais da PM e do Corpo de Bombeiros.
Reivindicações salariais gozam em princípio de alguma legitimidade básica, embora isso não autorize qualquer modalidade de ação. No caso, é preciso levar em conta que o governador, embora submisso à ditadura militar, pertencia ao partido de oposição, o então MDB. A oficialidade da PM e dos Bombeiros explorou a fragilidade política de Chagas Freitas, que havia tomado posse em março de 1979.
Rebeliões em Minas
Após a promulgação da Constituição de 1988, em 5 de outubro, os movimentos de insubordinação aos poderes constituídos são, por sua própria natureza, antidemocráticos, ainda que as reivindicações sejam justas e legítimas.
Vejamos a “Coluna do Castello”, 8 de novembro de 1988:
“Uma grave crise localizada em Minas Gerais não estava tendo até ontem audiência nacional. Trata-se da atitude rebelde assumida pelo estado-maior da Polícia Militar contra o governador Newton Cardoso a partir de reclamações salariais da tropa. Dezessete coronéis da PM recusaram posse ao novo comandante da força policial nomeado pelo governador e assumiram eles próprios o comando colegiado da instituição. O coronel reformado Felisberto Resende, uma espécie de porta-voz da rebelião, foi detido e recolhido à academia militar local, devendo ter igual sorte o coronel José Geraldo, que comandava a PM mineira em 1964, sob o governo Magalhães Pinto, e teve destacada atuação no movimento militar daquele ano”.
Em 1997, uma rebelião por melhores salários fez nascer uma liderança política, o Cabo Júlio, eleito deputado federal em 1998 e reeleito em 2002. Hoje, é vereador em Belo Horizonte. Exibe na entrada de seu siteo noticiário da TV Globo e de outras emissoras sobre o episódio de 1997, em que um soldado matou um cabo com um tiro na cabeça. Um resumo pode ser lido na Veja.
Fenômeno a ser dissecado
É possível, até provável, que o fenômeno tenha sido objeto de trabalho(s) acadêmico(s). Se não foi, essa dimensão do olhar crítico está fazendo falta ao entendimento da formação social brasileira.
Embora o trabalho jornalístico seja a base de qualquer mapeamento das ocorrências de insubordinações de massa aos comandos e governos, é à universidade que cabe analisar com método e serenidade essas disfunções, no mínimo curiosas num país constituído de cima para baixo, na base do sarrafo, da intimidação, do “cala a boca”.
Uma linha do tempo em tom crítico sobre a história da PM-RJ foi publicado pelo Globo online em maio de 2009, quando a corporação comemorou 200 anos de existência. Recomenda-se sua leitura.