A tragédia de Realengo nos remete à seguinte situação: já que o governo não tem controle sobre o seu estoque de armas – e nem satisfação dá à sociedade sobre isso porque, sendo as licitações sigilosas, ninguém pode saber quantas armas a polícia tem (sic) –, o Congresso tem a obrigação de criar leis que nos garantam o direito de saber, por exemplo, a origem das armas adquiridas pelo louco que invadiu a escola e matou 12 crianças.
Este tipo de numeração antiga dos armas de fogo, fácil de ser raspada, facilita a queima do arquivo e já deveria ser substituída ou reforçada por outro registro que impossibilite a sua destruição. Antigamente, os carros padeciam do mesmo mal e isso foi resolvido com meios mais complexos de identificação, exatamente para evitar as fraudes. Ora, desde quando o carro é mais importante que uma arma de fogo em um país que não tem controle sobre este tipo de produto?
Falo isso com a autoridade de quem sempre se preocupou com o comércio ilegal de armas no país. Aliás, foi por conta de uma investigação que eu fazia a esse respeito que a polícia tentou me colocar na cadeia, como pode ser visto no meu livro A Justiça dos Lobos – por que a imprensa tomou o meu lugar no banco dos réus (Biográfica; 2009).
Numeração é fácil de ser raspada
As armas utilizadas pelos chamados criminosos ocasionais (ladrões etc.) normalmente foram adquiridas através de licitações pelo Estado para abastecer as suas corporações e acabam alimentando o submundo do crime através de um comércio rotativo: elas são vendidas, tomadas e devolvidas à criminalidade, numa constante troca de mãos e de favores, à luz do dia e com o conhecimento da imprensa que, infelizmente, às vezes somente aparece quando há o disparo criminoso da arma.
Alguma coisa mais inteligente e útil tem que ser feita. Uma delas, é a abertura dessa caixa-preta que são as licitações de armas oficiais no país. O controle é feito pelo Exército e as licitações são fiscalizadas pelos Tribunais de Contas dos estados, que se preocupam unicamente com a licitude das compras. A questão não é essa. Se a polícia, militar ou civil, pede a compra de 10 mil armas, é preciso saber por que esse número, se a tropa continua sendo a mesma. O controle tem que ser rígido.
Outra questão é quanto à identificação do produto. Pelo modelo vigente, as numerações são externas, fáceis de serem raspadas. Seria o caso, então, de se esconder o registro em um local crucial, somente passível de destruição com a perda total do produto. E toda arma utilizada para algum crime teria que ser reciclada pelo fabricante, por ordem judicial. Isso impediria a reposição da mesma, da forma que vem ocorrendo.
Uma CPI da caixa-preta
Entendo que somente assim seria possível haver um controle mais rígido e fiscalizador das armas de fogo no país. Os procedimentos usados para a questão do porte legal são corretos e eficientes, mas o uso indevido da arma não está intrinsecamente ligado a este comércio que, reafirmo, é rigoroso. Bandido não faz uso deste comércio ilegal. Ele age no paralelo. E o paralelo é abastecido pelas corporações, não tenho a menor dúvida disso. Qualquer repórter sabe disso. Basta o mínimo de senso crítico e de capacidade cognitiva para entender que a coisa funciona assim no Brasil. Ora, se é assim, por que não se muda isso? O sistema é segredado exatamente porque ninguém pode saber o que ocorre nesse meio. Nem os fabricantes de armas podem falar sobre o assunto.
Não guardo boas memórias das CPIs, mas seria o momento de se instalar uma delas na Câmara Federal para abrir essa caixa-preta e buscar alternativas seguras para melhor identificar as armas de fogo em nosso país. Pelo menos isso.
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Jornalista