Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Sem sequer quem o sepulte?

O corpo de Wellington Menezes de Oliveira continua depositado em uma das geladeiras do IML. O assassino em série de Realengo, que em suas últimas escritas expressou a fantasia do rito fúnebre que desejava lhe fosse concedido (um séquito de “puros”/“puras” a lavar e (bem) secar o seu corpo, para depois envolvê-lo em imaculado lençol branco predestinado a esse fim pelo próprio), corre o risco de não vir a obter o gesto de cuidado que prescreveu à sua materialidade própria, auto-concebida como portadora de igual “pureza”.

Já há dois dias seu cadáver jaz em uma das geladeiras do Instituto Médico Legal. O prenúncio é que venha ser sepultado como indigente, dizem os veículos de imprensa. A se concretizar tal prognóstico, se cumprirá paradoxal efeito em sua ânsia por significação. Se é verdade, como disse Eugênio Bucci no Observatório da Imprensa, que o assassino em série da escola no Realengo buscava meio de fuga à invisibilidade (ostracismo) social que até então havia obtido em vida, suas fantasias suicidas de reconhecimento, materializadas também por meio dos cuidados fúnebres que prescreveu ao próprio corpo morto, estão em vias de se concretizarem precisamente ao contrário.

Passados já dois dias sem que ninguém venha reclamar-lhe o cadáver, poderá vir a ser sepultado como viveu: solitária e ignoradamente, por meio de um serviço burocrático, mecânico e rotineiro; simples descarte de mais um corpo morto, ainda preservado da putrefação por meio da geladeira institucional. A cumprirem-se os indicativos, terá o seu cadáver entregue ao processo biológico de destruição de forma semelhante àquela até aqui divulgada de como teriam transcorrido os seus vinte e três anos de existência: invisibilizada, atomizada, indiferente socialmente. Sem lamento ou dor que não aquelas decorrentes das perdas e dores ocasionadas pelo seu penúltimo gesto.

Nem um vínculo com ele e para ele construído

Sem pai nem mãe, nem alguém que tivesse a ele se irmanado em vida ou dele se apiedado após seus gestos mortais (nem mesmo o papa, símbolo máximo da religião que deveria seguir os preceitos de fraternidade transmitidos pelo Cristo, pediu ao seu Deus clemência para a sua alma), não deixa saudades, afetos, vínculos. Exceto aquele que, movido pela força de seus problemas psíquicos e sociais – que são também nossos, da sociedade inteira – estabeleceu com cada família de cada criança daquela escola de Realengo no momento preciso em que as atacou mortalmente. Vale dizer, a única emoção capaz de fazer surgir sobre si teria sido precisamente a de ódio, revolta e repúdio. Energias sem dúvida potentes, ainda mais para alguém que vem sendo retratado como aparentemente incapaz de qualquer potência afetiva.

Nenhum de seus cinco irmãos parece se importar a mínima com a destinação de seu corpo, como aparentemente se desimportavam com a sua vida inteira. Ao que parece pertencentes a uma outra geração, não desenvolveram com ele nenhum vínculo quando criança e vivo. Das entrevistas transmitidas pelos veículos de televisão (uma irmã e um irmão adotivos), denota-se que entre eles e Wellington não se estabeleceu o processo de acolhimento recíproco, não conseguindo entre si sentirem-se como “da família”, “um de nós”: ambos a ele se referem (ou parecem se referir, do modo como as falas foram editadas) como a um quase ou totalmente estranho; um desconhecido que habitou o mesmo lar de seus pais comuns e deles – ao menos, por Deus! – mereceu o necessário e indispensável amor, afeto, cuidados; numa palavra: pertencimento, significação. Não à toa o espetáculo último em busca de significação se deu após a perda do último ser que o amou e lhe significou a existência: a mãe adotiva, depois de já experimentada a dor da perda do pai adotivo.

Não que se esperasse uma legião de seguidores, de legitimadores de seu alucinado, patético, eloquente e doloroso gesto final prestar ao seu corpo morto os cuidados finais. Mas (ao menos) que a alguém houvesse sido possível a construção, o estabelecimento de algum vínculo, uma ponte, um elo de afeto significante.

Passados dois dias da encenação de seu horrendo gesto final, o abandono de seu corpo no IML torna possível a especulação de que talvez Wellington Menezes de Oliveira, quando em vida, não tenha conseguido – para além de seu pai e sua mãe adotivos – sentir-se em nossa sociedade integrado, incluído, reconhecido, aceito. Menino abandonado pela mãe biológica e por igual psiquicamente enferma; de pai biológico que usufrui em nossa “civilização” as benesses da irresponsabilização social e jurídica pela geração de vida humana que coproduziu; transcorridos vinte e três anos de sua existência, parece que nem um vínculo sequer foi possível ser com ele e para ele construído, afora com o seu pai e sua mãe adotivos.

Descanse em paz (na medida do possível)

Antes de exorcizar o potencial desestruturador presente em gestos como o seu (como vem fazendo a mídia, principalmente televisão, jornal e rádio, nominando-o de “monstro” e assemelhados, dirigindo-lhe exclusivamente o ônus da incapacidade na construção de vínculos – como se fosse algo unilateral), talvez nos fosse mais profilático e profícuo dirigir à sua memória (ou à sua alma, como creiam) um lamento: o de não lhe ter sido possível encontrar, entre nós outros, uma acolhida digna desse nome – sem que tal signifique de forma alguma a tentativa de por sobre os ombros de qualquer individualizadamente o peso de semelhante fracasso que, antes, é da ordem de nossa civilização inteira.

Solidária à dor dos alunos, professores, servidores e familiares das crianças e adolescentes atingidos direta e indiretamente por esta tragédia espetacular que parece mesmo querer fazer escola em nossos tempos, ouso aqui propor uma prece fraterna em clemência ao desabrigo exibido pelo espírito de Wellington Menezes de Oliveira.

Descanse em paz (na medida do possível), Wellington Menezes de Oliveira. Que o deus dos cristãos, em sua decantada mas igualmente não praticada misericórdia, possa perdoá-lo e confortá-lo, assim como àquelas todas crianças, jovens e adultos atingidos direta e indiretamente pelo seu grito espetaculoso e enfermo.

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Mestre em Política Social/UFF e doutoranda em História/UFF