O jornalista Merval Pereira substituiu o escritor Moacyr Scliar na Academia Brasileira de Letras. O que nos diz essa eleição?
Moacyr Scliar é romancista brasileiro de prestígio internacional. O gaúcho de origem judaica soube transfigurar o legado étnico e cultural em romances e narrativas curtas. Pontificou em assuntos de saúde em numerosos outros textos, médico profissional que era.
O candidato derrotado foi o romancista baiano Antônio Torres, escritor cujo perfil estava mais próximo do antigo ocupante: os dois são referência indispensável em nossa prosa de ficção. O signatário torceu por ele, a quem já premiou em comissões julgadoras e a quem, em Paris, certa vez ajudou, exercendo a prática ilegal da medicina, receitando um anti-inflamatório e se apresentando como doutor a uma atendente de farmácia nos arredores da Sorbonne, esclarecendo depois que ela concordou em vender o remédio, que era doutor… em letras!
O signatário esclarece que nada tem contra o vitorioso, senhor de um texto que o entretém todas as manhãs no jornal O Globo.
Presenças que dignificam
Faz tempo que poucos se importam com a Academia, mas cumpre comunicar ao distinto público, e principalmente aos leitores, que a Academia é ou deveria ser a Casa dos Escritores. Perguntarão os leitores: então o que lá fazem o cirurgião Ivo Pitanguy, o cineasta Nelson Pereira dos Santos, o sociólogo Hélio Jaguaribe, ao lado de juristas e diplomatas sem obras literárias de relevo?
Bem, neste caso, é preciso fazer os devidos discernimentos e ficar bem longe das ideologias e da luta política, que entre nós costumam nivelar por baixo qualquer discussão, pois o tema deixa de ser o tema e passa a ser a paixão da práxis, como se não tivéssemos na vida democrática a opção de fazer esse combate nos lugares para isso delimitados, cujo espaço emblemático são os partidos políticos.
Assim convém avisar aos navegantes, que, gostando ou não de José Sarney, ele é um romancista e sua presença na Academia não deveria causar estranheza. Não é o caso de Marco Maciel, pois este não tem obra de letras que garanta ali sua presença.
Alberto Costa e Silva talvez seja mais conhecido como diplomata, mas é autor de obra referencial em nossas letras, em poesia como no ensaio, principalmente naqueles estudos que fez sobre a escravidão em nosso país, em que aliou sua notável erudição histórica à sensibilidade do poeta, que soube cativar um profundo sentido do humano em suas pesquisas.
Outros nomes, ainda que não sejam referências em romances, narrativas curtas ou poesias, são presenças que dignificam a Academia e a sociedade brasileira por reconhecimentos que não podem ser negados, como ensaístas, pesquisadores da língua portuguesa e de suas literaturas, como Eduardo Portella, Evanildo Bechara e Domício Proença Filho.
Longe de Machado
É bonita a presença ali também de pensadores e educadores como Cândido Mendes de Almeida e Arnaldo Niskier, de um historiador como José Murilo de Carvalho. Mas para as avaliações do público, os escritores do núcleo duro, digamos assim, da Academia, que realmente representam nossas letras, são outros e entre eles estão Carlos Nejar (romancista, poeta, ensaísta), Ligia Fagundes Telles (romancista e contista), João Ubaldo Ribeiro (romancista e cronista), Carlos Heitor Cony (romancista e cronista), Ledo Ivo (mais conhecido como poeta, sua face mais visível), Nélida Piñon (romancista e contista).
E embora seja surpreendente a presença ali de Paulo Coelho, é muito menos estranha do que a de Marco Maciel, pois o primeiro, embora tenha sido eleito por motivos extraliterários, é escritor de ofício.
A Academia negou entrada ao poeta e cronista Mário Quintana. E o fez por três vezes. Quem perdeu com isso? A começar, a própria entidade, mas a maior perda é a insegurança que nos causam as instituições que com muita frequência se desviam dos fins aos quais se destinaram desde a fundação.
Merval Pereira não envergonha a companhia intelectual de ninguém, mas um escritor não se candidataria a uma academia de jornalistas e muito menos seria eleito no lugar de um deles. Essas confusões empobrecem o Brasil. E empobrecem ainda mais a Academia, que a passos largos, ao evitar ou esquecer tantos escritores, vai ficando cada vez mais distante dos ideais que lhe traçou o fundador, Machado de Assis.