A idéia de que o futuro está no passado pode surpreender muita gente, mas este desconcerto talvez sugira apenas uma apreensão convencional da história. Claro que não se pode falar de um confinamento, como se tudo estivesse definitivamente estabelecido. A questão aqui é que, para se inventar o futuro, é preciso revisitar a história. Neste estágio, parece profundamente necessário que uma perspectiva como essa ilumine da forma mais promissora uma questão que ganha corpo entre os debates nacionais, apesar da vergonhosa omissão da imprensa: a transposição das águas do rio São Francisco.
Dois fatos, ao longo da semana passada, acenam com a possibilidade de que a discussão ganhe espaço nos jornais, até agora com todos os sentidos voltados para os acontecimentos políticos em Brasília, como se estes fossem ocorrências inéditas e não históricas.
O primeiro deles é a série de cinco reportagens sobre o rio, exibida pelo Jornal Nacional e por isso mesmo com eco pelas vastidões deste país. O segundo, a greve de fome deflagrada pelo bispo da cidade de Barra, na Bahia, d. Luís Flávio Cappio, contrário ao desvio das águas do São Francisco.
Ao menos no segundo caso, a imprensa deve morder a isca. O bispo, que entre 1993-94 fez o percurso de quase 2.800 quilômetros entre a nascente do rio, na belíssima Serra da Canastra, no sul de Minas Gerais, até sua foz, na divisa entre Alagoas e Sergipe, garante que só abandonará o protesto se o governo desistir dos planos de transposição das águas. Caso contrário promete ‘entregar a vida’ (Folha de S. Paulo, pág A 17, 02/10)
A postura do bispo é uma atração típica para certo jornalismo rasteiro, tópico como as velhas pomadas para dores lombares, e, certamente, vai pontuar nos jornais no melhor estilo dos dramalhões de telenovelas. Na edição do domingo (2/10), a Folha de S. Paulo já trazia uma página ‘suja’ (com anúncio, no clichê jornalístico) com o bispo Cappio.
A idéia da transposição, retomada pelo governo e refutada pelo bispo, é antiga – daí outra conveniência, neste caso dupla, de uma revisão histórica.
Legado positivista
O primeiro a defender o desvio de águas do São Francisco para amenizar a carência hídrica em Pernambuco, Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte teria sido o intendente do município de Crato e deputado pelo Ceará, Marcos Antonio de Macedo, em 1847.
Entre 1852 e 1854, o engenheiro civil Henrique Guilherme Fernando Halfeld fez um detalhado levantamento do Vale do São Francisco – que deu origem ao Atlas e Relatório Concernente à Exploração do Rio São Francisco, desde a Cachoeira de Pirapora até ao Oceano Atlântico, uma obra deliciosa de se consultar, entre outras razões pelas belas ilustrações. Aqui, pela primeira vez, foram consideradas as viabilidades técnicas do projeto, mas as dificuldades, inclusive financeiras, fizeram com que fosse arquivadas – o mesmo destino que tiveram iniciativas que vieram a seguir, com o engenheiro cearense Tristão Franklin Alencar de Lima, em 1886, e com a Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas, em 1913 e 1919.
O Departamento Nacional de Obras e Saneamento retomou a idéia e, entre 1981-85, refez os planos considerando a transposição de um volume de até 300 metros cúbicos por segundo. Em 1994 foi a vez do Ministério da Integração Regional reexaminar o projeto. Em 1996 foi criado um grupo de trabalho para avaliar o impacto do projeto e, no ano seguinte, considerados, entre outros, os custos financeiros do empreendimento.
A posição do bispo Cappio, que estimulou um pedido de desistência da obra pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) (Estado de S.Paulo, 29/5/2005, pág A 17) evidencia que, quase 160 anos depois, a sugestão de Marcos Antonio de Macedo ainda divide opiniões.
A controvérsia reflete a história da introdução da ciência e das soluções técnicas no Brasil, resultado de um acidente napoleônico que trouxe para cá a corte portuguesa, em 1808. Desde então, as soluções de pontes, estradas e outras emergências, como a transposição dessas águas, sempre foram concebidas de forma localizada, sem levar em conta seus efeitos colaterais.
É reflexo também do legado positivista que permeou o meio científico brasileiro com visão restrita da natureza do conhecimento, tanto do ponto de vista científico quanto, digamos, de aplicação técnica. Para não deixar dúvida, o legado positivista está na bandeira nacional: ‘Ordem e Progresso’, idéia sem nenhuma aceitação epistemológica em abordagens contemporâneas, como a teoria do caos.
Corrupção endêmica
E aqui é preciso dizer que a imprensa, como fazia no Império, mantém-se ainda hoje restrita às preocupações com o poder central, ciosa dos benefícios políticos que pode tirar desses tediosos embates corporativos, sem nenhuma perspectiva promissora de transformação política estrutural.
A televisão tocou no assunto transposição das águas do São Francisco, mostrou as cenas e ouviu as histórias. Também aqui, certamente, é interessante dizer que o material da TV Globo estava pronto há meses e só não havia ido para o ar pela eclosão da chamada ‘crise política’ em Brasília.
Mas a televisão é efêmera o bastante para não consolidar opiniões, ao menos em casos de maior complexidade, como o que envolve as águas do Velho Chico – em outros tempos, quando as estradas eram poucas e ruins (continuam péssimas), batizado de ‘Rio da Unidade Nacional’.
Para a discussão ganhar profundidade e abrangência, a mídia impressa, especialmente os jornais, teriam a obrigação de envolver-se sob a forma de reportagens críticas, ouvindo todos os lados, fundamento elementar do bom jornalismo. O problema é que no jornalismo praticado neste momento no país, mesmo os fundamentos foram deixados de lado, substituídos pela crítica de gabinete, escrita sob encomenda dos donos dos jornais, na forma de editoriais e artigos editorializados nas páginas de opinião.
No caso da transposição das águas do São Francisco, até agora fomos contraditoriamente salvos pela incapacidade de passar da teoria à prática. Isso significa dizer que, se a transposição pensada entre 1981-85, de 300 metros cúbicos por segundo, tivesse sido feita, neste momento, em lugar de uma solução, teríamos dois problemas. E isto porque, desde então, ficou claro que a retirada desse volume de água do São Francisco comprometeria inevitavelmente a geração de energia elétrica. Significa também que o ‘apagão’ ocorrido sob o governo FHC (risco que ele disse desconhecer para, em seguida, responsabilizar um ministro, como se não fosse um ministro do governo dele) teria sido ainda mais dramático.
O ‘apagão’ no governo FHC reintroduziu a oferta de tochas (ainda disponíveis na rede de supermercados Pão de Açúcar), o que significa considerar que, metaforicamente, nos levou de volta à época das cavernas. Mas essa metáfora, ao que tudo indica, não foi suficientemente apreendida, refletindo uma dificuldade endêmica para o olhar histórico.
Ao lado de um ‘apagão’ mais dramático (quem sabe a que ponto retrocederíamos num estágio anterior às tochas?), a oferta de água na região carente certamente não teria sido amenizada, resultado da conjugação de problemas técnicos, históricos e ambientais que permanecem.
Do ponto de vista técnico, a evaporação das águas sob a incidência direta de raios solares na região tropical (que pode chegar a 3 mil milímetros/ano) esvaziaria boa parte do volume bombeado com enorme dispêndio de energia elétrica (já reduzida pela diminuição na oferta de água para fazer girar as turbinas), comprometendo os resultados finais.
Do lado histórico, a corrupção endêmica no Brasil teria produzido, sem a menor dúvida, volumes e volumes de denúncias que nunca seriam apuradas a fundo. E se fossem, ninguém seria responsabilizado. E se chegássemos ao estágio da apuração, os recursos roubados nunca retornariam aos cofres públicos. (A evidência de que os acontecimentos teriam esse curso não estaria suficientemente demonstrada no caso de desvio de recursos pelo juiz Nicolau dos Santos Neto, o ‘Lalau’, em São Paulo?)
Praga bíblica
Quanto aos danos ambientais, quem se dispuser a percorrer um trecho aleatório da BR-381, a Fernão Dias, que liga São Paulo a Belo Horizonte, em fase de conclusão de duplicação, encontrará exemplo mais que convincente.
Localizada no Sudeste, a região mais desenvolvida do país, a Fernão Dias é uma demonstração clara de corrupção (formalmente denunciada na Justiça por superfaturamento), má qualidade de serviços realizados (e por isso mesmo uma ameaça à segurança de seus usuários), além de abuso descarado e ainda assim impune, de fundamentos ambientais (invasão e destruição de matas ciliares, destruição de patrimônio paisagístico etc).
Comparando: se a Fernão Dias, no sudeste, os desrespeitos são inúmeros e permanecem impunes, o que esperar de áreas mais remotas dominadas pelo coronelismo mais arcaico, como a região que seria percorrida pelos canais de transposição de águas do São Francisco?
Entre outras dificuldades envolvendo a transposição do Rio São Francisco, há necessidade de recalque (bombeamento) de centenas de metros e escavação de túneis que chegam, em alguns trechos, a 15 quilômetros de comprimento por outros 8 metros de diâmetro, encarecendo imprevisivelmente as obras.
Em artigo publicado na Folha de S.Paulo (20/9, pág. A3), o ministro da Integração Nacional Ciro Gomes defende a transposição com argumentos sociais, contrariando ponto de vista oposto defendido, na mesma página, pelo governador João Alves Filho, de Sergipe.
Ciro Gomes baseia-se em dados que especialistas de capacidade reconhecida em problemas hídricos do Nordeste, como João Suassuna, da Fundação Joaquim Nabuco, olha com desconfiança. Num de seus artigos sobre a transposição das águas do rio, Suassuna refere-se a uma montanha de dados desencontrados e deixa entrever que este caos pode refletir uma estratégia de confundir uma visão crítica mais acertada envolvendo essa iniciativa. Por trás deste cenário teríamos uma continuidade da ‘indústria da seca’, tópico mais que conhecido, embora nunca superado, da história nacional.
Quanto ao governador do Sergipe, refere-se a exemplos de fracasso como o desvio das águas que alimentavam o Mar de Aral, na ex-União Soviética, juntamente com o efeito-estufa, um dos mais dramáticos acidentes ambientais da história da civilização. O Mar de Aral está secando em função disso e, como numa praga bíblica, navios que no passado recente foram embarcações pesqueiras agora são devorados pela corrosão num deserto salgado que já foi o leito do piscoso Mar de Aral.
Senso de realidade
O problema do artigo do governador sergipano é que ele carrega nas tintas, o que significa dizer que comparar a experiência do Mar de Aral com a transposição pretendida para o São Francisco (127 metros cúbicos, de acordo com o ministro Ciro Gomes) equivale a comparar laranjas a bananas. Ambas são frutas, mas muito diferentes entre si.
O drama do São Francisco é amplo, profundo e histórico. Exigira, mesmo numa abordagem rápida, um espaço que tenderia a cansar um leitor mais apressado.
Resultado do abandono de cinco séculos, suas águas que recebem esgotos in natura (uma dessas crueldades ainda em prática no Brasil) além de contaminações químicas e assoreamento por destruição das matas ciliares, não são exatamente o paraíso que se pode pensar à primeira vista. Mas é um rio promissor, que não está morto, daí o significado amplo de sua metáfora como ‘rio da unidade nacional’.
O Velho Chico reflete políticas sumárias oficiais do passado recente, entre elas o Pro-Várzeas, deflagrado pelo governo militar com apoio amplo e irrestrito da oligarquia agropecuária, ávida de lucros rápidos, lixando-se para os custos ambientais. O Pro-Várzeas, sozinho, contribuiu para destruição de um imenso ecossistema em todas as áreas em que foi praticado, especialmente pela retificação dos cursos de rios com a justificativa de inibir inundações em períodos chuvosos.
O que seria do Egito e por conseqüência de toda a história da cultura, já que o Egito esteve na base da formação da Grécia (Tales de Mileto, tido como o primeiro filósofo, andou pelo Egito antes de iniciar sua produção filosófica na Grécia), sem as inundações do rio Nilo?
Outra evidência da visão curta dos generais esteve na posição oficial que o então ministro do Planejamento, João Paulo dos Reis Velloso, defendeu em 1970, quando do Congresso de Estocolmo, para debater questões ambientais planetárias. Segundo o ministro, o Brasil tinha ‘rios à vontade para ser poluídos’, traduzindo a interpretação militar de que preocupações ambientais eram apenas uma estratégia dos países desenvolvidos para evitar que nações emergentes, como o Brasil, tivessem acesso às suas pretensões.
Como se vê, a exemplo de Shakespeare, ‘nada é novo sob o Sol’, ao menos de um ponto de vista histórico.
Até agora, ao menos nos jornais, uma única voz sensata se fez ouvir em relação à transposição das águas do rio São Francisco: Washington Novaes, no artigo ‘No mistifório do São Francisco’, que saiu na edição de sexta-feira (30/9, pág. A2) do Estado de S. Paulo. Seu escrito termina com uma surpreendente citação do bispo Luiz Flávio Cappio, sobre a decisão de ir às últimas conseqüências argumentando que ‘quando a razão se extingue, a loucura é o caminho’.
Para Novaes, esta posição é ‘assustadora’.
Assustadora, apesar de recorrente, pode se acrescentar.
Assim, se sobrou algum senso de realidade em Brasília, seria de se esperar que as obras de transposição não fossem iniciadas antes de um diálogo mais inteligível, em escala nacional, coerente com a imagem do rio. Mas para viabilizar uma necessidade dessa natureza a imprensa deve assumir suas responsabilidades. Em vez de continuar omissa e, com o estrago feito, assentar o traseiro no conforto das salas bem arejadas e, então, apenas criticar.