O Milênio conversou com David Leigh na sede do The Guardian [em Londres], e saímos de lá com a mesma impressão que já tínhamos extraído do livro e dos artigos que ele continua a publicar no diário de centro-esquerda onde trabalha há duas décadas. Pouca ou nenhuma simpatia de Leigh pelo criador do site Wikileaks, Julian Assange, o ex-hacker australiano de 40 anos que passou as informações brutas à imprensa internacional e virou o rosto conhecido (cabelo louro quase branco) do mais recente fenômeno de mídia eletrônica.
Na entrevista ao Milênio e no livro recém-lançado, Wikileaks – a guerra de Julian Assange contra os segredos de Estado, Leighdeixou claras suas restrições a Assange, que considera inteligente e hábil no que faz, mas paranóico e megalômano no comportamento diário. Outros colegas do respeitado diário britânico parecem concordar com Leigh. Assange, por sua vez, cortou relações com o Guardian e o New York Times, que o criticaram. (Clique > para assistir)
O repórter Nick Davies, que começou a negociação do jornal com Assange, largou oprojeto no meio do caminho porque concluiu que o australiano agiu de forma desonesta quando, antes mesmo da data de publicação acertada em conjunto, cedeu parte do material à emissora britânica de TV Channel 4.
As relações pioraram mais ainda quando Davies foi a Estocolmo e conseguiu documentos confidenciais da polícia sueca com detalhes de uma acusação de estupro contra Assange. Davies publicou a reportagem no Guardian e abalou a imagem de heroismo e retidão que cercava o responsável pelo site.
Assange alega que, se perder no Reino Unido o processo de extradição para a Suécia, pode acabar extraditado em seguida aos Estados Unidos, onde ele acha que corre o risco de processo por traição e, num caso extremo, condenação à morte.
“Besteira”, diz Leigh. “Os acordos de extradição entre Estados Unidos e Reino Unido são até de aprovação mais fácil do que ele enfrentaria na Suécia, e os americanos não pediram extradição dele à Justiça britânica. E se ele for daqui para Estocolmo por causa de uma acusação sexual, os americanos não podem legalmente pedir extradição depois por outros motivos”.
58 dígitos
O editor-chefe do Guardian, Alan Rusbridger, escreveu que a mídia internacional tende a tratar o criador do Wikileaks ou como messias-cibernético ou como vilão de James Bond, quando na verdade se trata de uma pessoa insegura, paranóica e obcecada em não perder o controle de tudo que o cerca.
Reação semelhante teve o editor-chefe do New York Times, Bill Keller, também obrigado a lidar com Assange e hoje convencido de que o australiano se deixou transformar pela própria fama de bandido-celebridade. “Ele virou uma figura de culto para europeus jovens e de esquerda, além de um ímã para mulheres”, disse Keller.
O editor do Times acrescenta que, ao contrário do papel que Assange gosta dese atribuir no projeto, como comandante da operação conjunta Wikileaks-mídia, ele foi tratado apenas como uma fonte de informação, em posse de farto material que oferecia potencial mas precisava ser avaliado por critérios jornalísticos.
Quando o Times publicou um perfil crítico de Assange, o australiano ameaçou vetar a participação do jornal americano no projeto. Leigh reagiu indignado: “Se você fizer isso, o Guardian também cai fora!” Mesma reação teve o editor da revista semanal alemã Der Spiegel, parte do grupo inicial de imprensa reunido para avaliar e publicar a massa de material bruto em mãos do Wikileaks. Assange recolheu as armas e aceitou prosseguir com o acordo previamente acertado.
Quando decidiu ceder o material bruto guardado online, Assange simplesmente passou aos jornalistas a senha de 58 dígitos: “AcollectionOfDiplomaticHistorySince_1966_ToThe_PresentDay#”
Estava tudo lá.
Processo de extradição
Após a publicação dos documentos secretos pelos jornais, Assange se tornou alvo de ataques, sobretudo nos Estados Unidos, o que incluiu protestos (moderados) do Departamento de Estado e do Pentágono, condenando a divulgação de documentos secretos e privados. Mas envolveram também reações histéricas, como os da extrema-direita americana, cujos militantes ofereceram até sugestões de matar Assange como terrorista ou prendê-lo como traidor. A sempre estridente Sarah Palin disse que ele deveria ser caçado como um talibã ou militante da Al-Qaeda.
Por outro lado, seus defensores, inclusive celebridades como Bianca Jagger e Michael Moore, passaram a tratá-lo como herói e guerrilheiro da liberdade, perseguido pelas forças ocultas do establishment.
A fama de Assange como vítima de perseguição internacional ganhou mais fôlego quando autoridades suecas reabriram um caso policial em Estocolmo, onde duas mulheres o acusam de estupro, resultado de encontros íntimos em que ele se recusou a usar camisinha e foi em frente apesar da insistência das parceiras casuais em que ele usasse proteção.
Leigh nos explicou que as mulheres tentaram convencer Assange depois a fazer um teste de Aids, mas como ele se recusou, só então elas apelaram à polícia.
Os suecos pedem ao Reino Unido a extradição de Assange para que vá depor em Estocolmo. Juízes em Londres concordaram, mas advogados dele entraram com recurso e Assange agora aguarda sob fiança uma decisão final da justiça britânica. Foi acolhido por um simpatizante milionário numa mansão no campo e não pode deixar o Reino Unido, mas tem autorização para viagens internas, se avisar a polícia e não remover a tornozeleira eletrônica que permite localizá-lo via GPS.
Recebeu autorização em março para dar uma palestra na Universidade de Cambridge, onde voltou a ser notícia ao alertar que a internet pode ser usada como “a maior máquina de espionagem que o mundo já viu”. Disse que embora a rede permita melhor cooperação entre ativistas e maior transparência das atividades do governo, pode também dar às autoridades a capacidade de capturar dissidentes.
Quase como endosso das palavras de Assange, poucos dias após o alerta dele em Cambridge, o Pentágono anunciou o desenvolvimento de um software que vai permitir aos militares americanos manipular a mídia social, usando falsas identidades online para influenciar conversas na internet e espalhar propaganda pro-americana.
Enquanto Assange aguarda o processo de extradição (advogados dizem que pode se arrastar durnte meses), bem pior é a situação do soldado americano Bradley Manning, de 22 anos, preso numa base militar americana, sob a acusação de ter repassado os documentos secretos ao Wikileaks, quando servia no Afeganistão como especialista em computadores, com acesso a redes internas de alta confidencialidade.
Informações de bastidores
Na entrevista ao Milênio, Leigh, que mantém contato com os advogados de Manning, contou da situação precária do soldado na primeira prisão para onde foi levado, onde alegou sofrer privações e tortura, sem ter sido julgado ou muito menos condenado pelo que teria feito. Diante de manifestações públicas contra o tratamento a Manning (uma inclusive na presença do presidente Obama), o soldado foi transferido para outra prisão, sob promessas de melhores cuidados.
Em Washington, o principal porta-voz do Departamento de Estado, Philip Crowley, perdeu o emprego quando criticou o Pentágono pelo tratamento “ridículo, contraproducente e estúpido” ao soldado-hacker Manning na primeira prisão.
Manning foi identificado e preso devido ao vazamento dos documentos secretos porque ousou contar sua proeza a outro hacker americano, que em seguida o denunciou.
A se confirmar a história que o próprio Manning revelou ao hacker-delator, ele levava todo dia um CD com o título “Lady Gaga” à sua área de trabalho em computadores supostamente protegidos por alta segurança, em Bagdá. Frente à tela, inseria o CD na máquina e fingia ouvir a música enquanto trabalhava nos sites protegidos do governo americano (JWICS e SIPRNet), a que ele tinha acesso. Na verdade, porém, estava fazendo um download do material, que saía dali no CD Lady Gaga mas em vez de música pop da cantora moderninha, continha uma fonte imensa de segredos oficiais, que Manning enviou depois ao Wikileaks.
Passada a fase inicial de reportagens impactantes publicadas com material extraído do Wikileaks, o volume de revelações diminuiu. Mas não cessou, porque há tanto documento bruto ainda a analisar, que muita pérola ainda pode surgir. De vez em quando, sai algo novo em algum canto do mundo. Um deles, publicado na Índia em março, denunciou o governo daquela país por comprar votos e provocou escândalo nacional.
Em abril, vários jornais publicaram revelações sobre o (mau) tratamento de detidos na base americana de Guantánamo, onde é comum a prática de tortura contra suspeitos de terrorismo e outros que os documentos mostram nada ter a ver com essa atividade. O Pentágono criticou a publicação dos segredos que deixam mal os militares americanos, mas não conseguiu conter a publicação.
Além de detalhes sobre a guerra, inclusive inúmeras mortes não divulgadas de civis, as mensagens diplomáticas confidenciais revelavam informações de bastidores. Por exemplo, que o ex-ditador da Tunísia, Ben Ali, roubava mais dos cofres públicos do que se desconfiava. Meses depois, ele foi deposto, na primeira das revoluções de rua qua ainda sacodem o mundo árabe.
“Aversão a riscos”
Também as família de Muamar Kadafi na Líbia e de Hosni Mubarak no Egito tiveram segredos revelados de corrupção e abuso de poder. O rei Abdullah, da Arábia Saudita sunita, apareceu a favor de um ataque militar americano ou israelense ao Irã xiita.
Dirigentes da gigante de petróleo anglo-holandesa Shell se gabaram de infiltrar gente em todos os ministérios da Nigéria. Laboratórios farmacêuticos apelaram ao suborno para escapar de processos.
O governo americano mandou seus diplomatas bisbilhotarem os telefones celulares e até dados biométricos de diplomatas estrangeiros na ONU, ação que viola as garantias de neutralidade oferecidas à organização em Nova York.
Entre cabeças que rolaram em consequência do Wikileaks, o embaixador americano no México, Carlos Pascual, deixou o cargo que ocupou durante quase dois anos porque uma de suas mensagens vazadas dizia que o exército mexicano sofria de “aversão a riscos” no combate ao tráfico de drogas.
A embaixadora dos Estados Unidos no Turcomenistão foi transferida para a Sibéria porque escreveu que o presidente do país onde servia era meio obtuso.