Nos anos 80, quando um então metalúrgico da região do ABC paulista rompia barreiras ao reivindicar melhores condições de trabalho e bradava contra a ditadura, tinha em sua essência as qualidades de comunicador. Atuava como uma espécie de porta-voz de boa parte da população sob muitos aspectos ligados aos embates sociais, políticos e econômicos. De operário de escassa formação, mas dotado de carisma, Lula conseguia atrair a mídia como uma nova liderança, articulava e conciliava os conflitos internos de sua categoria, falava pela comunidade e embevecia jornalistas com suas entrevistas e discursos inflamados. Com imagem bem construída, mesmo preso mereceu respeito de seus algozes e, talvez por isso, nunca foi torturado, como era prática comum dos ‘Anos de Chumbo’. Veio a criação do Partido dos Trabalhadores (PT) e o processo de democratização do País. E, depois de muitas tentativas, o eterno ‘perdedor das eleições’, assumiu o mais alto cargo político da Nação, em 1° de janeiro de 2003. Dele, todos esperavam muito. Na área da comunicação, então, os profissionais do setor aguardavam com grande expectativa a composição da equipe que cuidaria do relacionamento do governo com os cidadãos, a imprensa, os empresários e o mundo.
O jornalista André Singer foi então o primeiro porta-voz de campanha eleitoral do País, iniciando na equipe de Lula. Com verbas que superavam R$ 30 milhões, a campanha preconizava ação diante das mazelas socioeconômicas e fez ecoar bordões como ‘O espetáculo do crescimento econômico’ e ‘Programa Fome Zero’, dentro do slogan ‘A esperança venceu o medo’. Eleito, a comunicação de Lula passou a ser unilateral, com poucas coletivas, relacionamento esporádico com empresários e representantes das comunidades, numa mostra de que a comunicação institucional do setor público cambaleava, dando espaço apenas para a propaganda pública com o slogan geral ‘Brasil, um país para todos’. O governo parece acreditar que tudo é propaganda, ao contrário do que preconiza o livro ‘Tudo é comunicação’, de Paulo Nassar, diretor-presidente da Aberje e professor da ECA/USP. A obra defende a importância de todos os elementos comunicacionais na construção da imagem, seja de um produto, empresa ou personalidade, e é uma referência para aqueles que praticam a comunicação integrada como ferramenta estratégica para a gestão.
Com o incremento das exportações, Lula viajou por vários paises. Mas nem diante dos jornalistas estrangeiros ou correspondentes em outros países, tem havido um programa de comunicação estruturado. Observando o relacionamento do governo brasileiro com a imprensa e a população argentina, Roberto Barreiros, correspondente da revista Imprensa em Buenos Aires e mestrando em relações internacionais na Universidad de Buenos Aires, acha que não existe uma linha estratégica de comunicação e, se existe, é a de falar o menos possível. ‘Comparando com o Governo FHC, a Embaixada se fechou aos correspondentes brasileiros. A relação agora é estrita-mente formal, já que não há mais as conversas em off e cafés da manhã para troca de idéias, que foram tão produtivos durante a gestão FHC’, opina. Ele conta que essa postura se agravou com a substituição do embaixador José Botafogo Gonçalves, que era uma figura conhecida da imprensa argentina e defendia o Brasil com muita diplomacia, pelo atual embaixador Mauro Vieira, em maio de 2004.
Submersão total
Por aqui, a retomada do crescimento econômico rendeu muitos elogios de variadas correntes ao ministro Antonio Palocci. Com isso, o presidente não passava um discurso sem fazer referência ao bom momento do Brasil, em mais uma ação de marketing. Mas os escândalos provocados por denúncias de propinas a parlamentares da base aliada e de irregularidades no pagamento à agência de Duda Mendonça – que fez a campanha eleitoral de Lula e prestava ser-viços de publicidade institucional ao governo federal –, minaram o que restava de comunicação. E ela submergiu de vez num momento delicado de perda de credibilidade com a crise política e a ameaça de cassação a fiéis escudeiros de Lula, alguns desde os históricos movimentos sindicais.
Os episódios relacionados a Marcos Valério (sócio das agências SMP&B e DNA Propaganda e acusado de ser o gestor do ‘mensalão’) e Duda Mendonça levaram a opinião pública a voltar ao velho pensamento de que propaganda é necessariamente mentirosa e, desta vez, que também os publicitários são coniventes com irregularidades na administração pública. Disposta a lutar por um mercado desbravado por profissionais que fizeram com que o nível da publicidade brasileira alcançasse os primeiros lugares no ranking internacional, a Associação Brasileira de Agências de Publicidade (Abap) decidiu se pronunciar. Em nota de esclarecimento sobre as denúncias envolvendo agências contratadas pelo governo federal, a Abap afirma apoiar as investigações. Ao mesmo tempo, explica que apenas 15% das verbas compete às agências, sendo o restante destinado à compra de espaço publicitário nos meios de comunicação. Isso para que a população possa interpretar melhor os altos valores referidos nos recentes escândalos, permitindo separar o joio (dinheiro que não tem a ver com serviços prestados de propaganda) do trigo (soma por real trabalho de publicidade realizado). Procurado por Comunicação Empresarial, o presidente da Abap, Dalton Pastore, não retornou nossos contatos. Agências que sempre recusaram categoricamente atendimento às contas de governo, como Almap/BBDO, Talent e W/Brasil, preferiram não se aproveitar do momento para levantar suas bandeiras.
Verbas para 2006
Da parte do governo, a Duda Propaganda foi afastada do grupo das agências que atendem as ações institucionais da presidência. E também estão sendo consideradas novas concorrências para as contas dos Correios e Banco do Brasil, empresas envolvidas diretamente no ‘mensalão’. Mas apesar da publicidade do governo Lula estar no centro dos acontecimentos, não há previsões de cortes de verbas para 2006. No início de setembro, foram encaminhadas propostas às Comissões de Orçamento da Câmara dos Deputados e do Senado Federal para os investimentos estimados em R$ 364,5 milhões para o próximo ano. Esse valor é ainda maior que o de 2005, de cerca R$ 340 milhões. O orçamento para o próximo ano inclui ações de comunicação institucional de governo que deverão ser coordenadas pelas agências Matisse e Lew,Lara, calculadas em R$ 156,5 milhões (na proposta anterior era de R$ 113 milhões, mas deverá chegar a R$ 140 milhões). Para a chamada Publicidade de Utilidade Pública (PUP), estariam sendo previstos R$ 6 milhões (R$ 1 milhão a mais que em 2005). A verba total de publicidade da Presidência da República, ministérios e PUPs prevista para 2005 foi de R$ 222,7 milhões. Já as estatais Petrobrás, Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal e Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, entre outras – para as quais seriam destinados R$ 644,3 milhões – devem repetir esse montante para o próximo ano. A previsão é a de que as comissões finalizem a análise dos orçamentos até dia 15 de dezembro. Bancos e a BR Distribuidora, por exemplo, necessitam de campanhas agressivas para manter e ampliar seus market shares. Mas com as denúncias de irregularidades apuradas na publicidade do governo, parlamentares acreditam que pode haver uma demora na liberação das verbas e outros ainda lembram que em anos eleitorais não se pode ampliar esse tipo de investimento.
Mas a proposta abrange apenas os custos de mídia, sem incluir a produção das peças, que envolve cerca de R$100 milhões, além da publicidade legal (coordenada pela Radiobras), com mais R$ 150 milhões, e ainda os patrocínios culturais e esportivos, cujo budget chega a R$ 500 milhões por ano. Com isso, o investimento publicitário total do governo para 2006 pode ser de aproximadamente R$ 1,5 bilhão. Embora esses números não apontem a verba exclusivamente dedicada à comunicação organizacional, acredita-se que ela deva ser inferior a 10% do montante com publicidade. Quando procurada por nossa reportagem, a Secom não se pronunciou sobre a estratégia de comunicação do governo federal.
Despreparo para a crise
A crise de comunicação não se trata apenas da alocação de recursos. Especialistas em gerenciamento de crise ouvidos por Comunicação Empresarial são unânimes: é visível o despreparo técnico do governo para enfrentar a onda de denúncias que assola o País. Para eles, os sinais da falta de um projeto consistente de comunicação no governo surgiram muito antes de a palavra ‘mensalão’ freqüentar as páginas dos cadernos de política dos jornais. ‘A comunicação do governo é fraca’, confirma Mauro Lopes, sócio da MVL Comunicação. Para justificar seu argumento, o jornalista recorda que a administração petista começou por apresentar o Fome Zero, o que parecia indicar que as ações sociais seriam o carro-chefe das ações. Num segundo momento, depois de várias críticas ao gerenciamento de seu principal programa social, o governo mudou a estratégia e passou a destacar o desenvolvimentismo. Esse discurso, no entanto, acabou sufocado pela ortodoxia da política econômica. Concomitantemente, buscou chamar atenção para a política externa do País, que ‘redundou em der-rotas importantes e foi atropelada pela crise’, diz Lopes. Para ele, hoje, o governo tenta contrapor a firmeza na condução da política econômica à crise política. ‘Mas o crescimento explosivo de países como a China e a Índia versus o crescimento medíocre do Brasil tem inviabilizado essa linha discursiva’, argumenta Lopes.
Outro ponto que se tornou alvo de discussão diz respeito aos responsáveis pelas estratégias de comunicação. Assim como vários outros governantes, Lula delegou a condução do processo a ex-profissionais de redação e/ou militantes, que não necessariamente possuem o perfil adequado para responder pela comunicação organizacional. ‘O governo, no início da administração, buscou alguns profissionais de reconhecida competência para a área de comunicação. É o caso de Ricardo Kotscho, que já deixou o posto, e de André Singer, porta-voz. Mas faltou a implementação de uma política de comunicação ampla, estrategicamente definida. Talentos pessoais não são suficientes para garantir isso. Com a crise política, ficou clara essa deficiência’, afirma Ciro Dias, sócio da agência Imagem Corporativa.
Na visão de Dias, quando o ambiente político azedou, a situação só fez agravar, e o governo se apegou ainda mais no apelo popular da figura do presidente Lula. A estratégia, no entanto, é considerada perigosa. ‘Assistimos a uma série de erros primários e atropelos desnecessários, que expõem a figura do presidente. Para salvar a pele, Lula precisa usar constantemente seu carisma e talento pessoal para, mesmo que de forma improvisada e paliativa, substituir a falta de uma estrutura de comunicação decente’, critica Fábio Steinberg, consultor de comunicação e especialista em gerenciamento de crise.
Outro consultor de comunicação, Waltemir de Melo, afirma que a comunicação piorou com a turbulência no cenário político. ‘Os discursos do presidente sobre os casos de corrupção no governo indicam isso. Se de um lado ele segue os dogmas das cartilhas de gerenciamento de crises, ao reconhecer os problemas e se desculpar, de outro não dá consistência ao conteúdo de seu discurso, não demonstra ou assume a postura correta de quem realmente quer ver os problemas solucionados. Aqui, a gestão política está falando mais alto do que a orientação comunicacional ou estratégica’, diz Melo.
Canal com empresários
Por parte dos empresários, a relação também é vista com parcimônia. Oded Grajew, presidente do conselho deliberativo do Instituto Ethos e um dos primeiros empresários a se aproximar de Lula, afirma que a implantação de representantes de lideranças empresariais no conselho consultivo do Conselho de Desenvolvimento Social e Econômico foi uma tentativa de Lula dar voz às indústrias, sindicatos, comércio e mercado financeiro. ‘É um canal de comunicação em que podemos discutir o Brasil diretamente com o presidente’, diz Grajew. Mas ele ressalva que a sociedade demanda conversas permanentes e que poucas foram as oportunidades de entrevistas coletivas amplas com jornalistas, por exemplo.
Para Grajew existe uma crise relacionada principalmente à transparência em relação às agências de publicidade e aos operadores da publicidade de contas do governo, pondo em xeque esse trabalho. Grajew acha que o porta-voz do governo federal apenas informa, mas não dialoga, nem tira dúvidas. ‘Tribunal de Contas da União, Receita Federal, Banco Central e demais órgãos não cumprem seus papéis de detectar falhas e apresentar os fatos. Então, a população fica sabendo tudo pelas denúncias da imprensa. Faltam canais para a sociedade se manifestar. E no Conselho também aconteceu o mesmo’, reforça Grajew, que participou de reunião do órgão da presidência em março deste ano, antes da crise política.
Em relação às Organizações Não-Governamentais, a situação parece semelhante, quando na verdade, se esperava maior parceria devido aos anunciados projetos sociais. ‘Independente de governo, o Ibase sempre interagiu com o governo em diversos projetos. No atual momento, temos um diretor (Chico Menezes) como presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), órgão da Presidência da República. Mas os programas apresentados para órgãos do governo aconteceram normalmente, sem nenhuma distinção especial por se tratar do PT’, constata Claudia Mansur, pesquisadora do Ibase. E ressalta: ‘Betinho criou o Ibase para ser uma ‘fábrica de democracia’. Nosso primeiro projeto esteve ligado à informação porque ele acreditava que não existe democracia sem informação. Então, um de nossos focos é a transparência e o carro-chefe de nosso trabalho é a divulgação da informação’, diz Claudia. Outra palavra-chave para o Ibase é ética em todas as instâncias.O Ibase colaborou para o impeachment do presidente Collor por acreditar que houve um grande prejuízo à ética na política. Mas, desta vez, o Ibase não almeja a saída antecipada de Lula do cargo e até é uma das signatárias da Carta ao Povo Brasileiro, criada pela Associação Brasileira de Organizações não Governamentais (Abong) e entregue ao presidente. A mensagem explicita que as entidades são contra a desestabilização política do governo e contra a corrupção, mas exigem mudanças na política econômica, prioridade nos direitos sociais e reformas políticas democráticas.
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Editora-executiva da revista Comunicação Empresarial; colaborou Clayton Melo