Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

‘Pai, afasta de mim esse cálice!’

Sírio Possenti rubricou um texto meu no site Terra. Pensam o quê? Não é qualquer um que pode ter um professor titular da Unicamp e linguista como ‘orientador’, sem precisar ir de São Paulo a Campinas, pagar pedágio e enfrentar mais de uma hora de viagem. Bendita internet. Ele diz que meu texto está em itálico e o dele entre parênteses, mas neste artigo que ora escrevo a palavra dele recebe sempre aspas, em respeito ao texto alheio. É verdade que não o autorizei a fazer decalque de meu artigo ‘A língua portuguesa venceu!’, publicado neste Observatório da Imprensa, e só aqui, pois prezo este veículo pelo próprio nome: um local de onde se podem observar os movimentos da mídia e comentar com total liberdade. Um site que, acredito, entende a Linguística em sentido amplo, como um estudo de linguagem que não se atrela às especificidades desta ou daquela corrente, mas contribui para o bem maior: a Comunicação.

Com fúria, paixão e ironia, o professor desfere insultos contra o meu texto e minha pessoa, (chama-me ‘dona Amatti’, ignorando os bons modos!) e por isso não entendo por que ele se absteve de escrever seu próprio artigo, contentando-se em ‘revisar’ um texto que não lhe pertence. A crônica que escrevi e postei – e não ‘desovei’, termo mais apropriado para quem vai dispensar um cadáver no matagal, ou parir, desembuchar, como a etimologia indica, e parece-me chocante essa última expressão, quase escatológica – não vem para confundir ou agredir pessoas ou instituições, mas esclarecer a influência que a Língua Portuguesa exerce sobre os falantes. Esse era o ponto que gostaria de focar. Valores e interesses transparecem não apenas no discurso, mas nas escolhas que emolduram o texto, como demonstra a réplica do linguista.

Observações risíveis

Vou me restringir a alguns pontos que apenas reforçam por que a Língua Portuguesa sempre vence a quem a quer torcer, mais ainda quando esse alguém perde a razão, o equilíbrio emocional e revela sua ideologia ao fazer publicar um apócrifo em sites sem o conhecimento do atacado. Ademais, sem a fineza de recomendar que se leia o texto original, remetendo-o ao link onde foi publicado. Ética é fundamental em qualquer debate.

O título da colagem, ‘Quem mandou escrever?’, uma pérola para análise do discurso, tem duplo sentido. Literalmente, a pergunta remete ao primeiro parágrafo do comentário do linguista e é uma ameaça: ‘Quem mandou escrever? Seu pai? Sua mãe? Um partido político? Algum veículo de imprensa de direita, esquerda, subversivo? O pastor? O padre? Está a mando de quem? Diga-me logo quem mandou você escrever, que quero saber! Senão…’ Que medo!

De outro, figurativamente, é a vingança do mau professor: ‘Quem mandou escrever? Escrever não é para você, `gramatiquinha´. Vá fazer um bolo ou passear no shopping. Agora você vai ver, vou rasurar seu texto, picar o papel, queimá-lo, deturpá-lo, substituir sua linguagem pela minha e fazer tantas rubricas que ninguém mais vai saber o que você escreveu, e nem o que eu escrevi como se fosse você.’ Duplo medo! Em ambos os casos, prevalece a ordem: ‘Cale-se!’

Esse título me fez recordar a época da ditadura, em que nada podia ser publicado sem a prévia censura de funcionários públicos que rabiscavam seus garranchos em letras de música, artigos de jornais, colocavam tarjas pretas em trechos inteiros e escreviam nas margens com caneta vermelha observações risíveis: ‘Este personagem não trabalha, é um vagabundo, não pode’, ou como em uma peça em que fiz assistência de direção: ‘Vetado porque as crianças aparecem cometendo atos cruéis’.

Palavra colada na ideia

É verdade que aqueles censores eram bem menos preparados que o professor linguista, mas a atitude é a mesma. Não vou comentar nem reclamar por meu raciocínio ter sido chamado de cafona. Não é uma questão de raciocínio, mas de informação acerca de como a linguagem é trabalhada no marketing político. Nada foge ao planejamento. Nenhuma vírgula. Cada palavra, gesto, olhar ou enquadramento é estudado e determinado ao candidato que, obediente, segue a cartilha e ganha o pleito. Quem desobedece, é punido com a derrota nas urnas. Em suma, trata-se de uma batalha nos bastidores, em que vence a melhor publicidade. Mesmo pessoas bem-preparadas podem não compreender que isso está nas entrelinhas e faz parte do jogo político. Não é novidade, mas sempre é bom ser didático.

A expressão ‘presidenta’ foi cuidadosamente estudada e mesmo depois de empossada a presidente, a palavra foi plantada em factoides com ampla cobertura de mídia, a exemplo do episódio com Marta Suplicy e Sarney. Preocupo-me, sim, com o rendimento e as atividades do Congresso, afinal, somos nós que os pagamos, não?

Além de petistas, há outras pessoas que utilizam de modo contumaz a palavra ‘presidenta’: as feministas, que acreditam afirmar seu gênero, os simpatizantes dos exotismos das palavras, ou simplesmente os puxa-sacos que querem agradar à presidente para obter favores ou demonstrar apreço e respeito. Nenhum deles está livre para pensar fora das estratégias propostas e divulgadas desde o programa eleitoral gratuito porque a palavra está colada na ideia, anterior a seu uso.

Digo isso porque não sou, como o linguista disse, ‘desinformada’. Além de ler inúmeras publicações, ouvir rádio, ler livros e ver quase todos os noticiários, assisti com interesse ao horário político e, por ter passado por quase todas as funções como jornalista, em um momento que prefiro esquecer, tive de trabalhar com marketing político.

Entender por dentro

Tentei, ao longo do meu texto rubricado, avaliar a quais partes o comentarista dedicava o maior bloco de comentários, a fim de identificar a causa de ter despertado tal paixão, pois com tantos textos anônimos que falam sobre a polêmica ‘presidente x presidenta’ rolando na internet, bem poderia ele apropriar-se de algum deles. Preferiu o assinado por mim. Estou lisonjeada.

O trecho mais extenso, em que a a linguagem escrita transforma-se em transposição da fala e quase estrangula o texto original, refere-se a uma imagem, uma ilustração a título de exemplo que fiz a respeito dos falantes de ‘presidenta’, claramente pertencentes ao partido da presidente. Mas ser petista não deve ser insulto ou vergonha, por que seria? Será que alguém pode me explicar quando a democracia se transformou em ditadura da maioria?

Os comentários culminam por me chamar de desinformada e reacionária, em um trecho entrecortado por hifens e com observações deslocadas, não sem antes errar a grafia de meu sobrenome, por um lapso de digitação, tal a sanha assassina do linguista. Isso significa que escreveu freneticamente e não revisou o próprio texto. Ele, sim, o ‘desovou’ em alguns sites, na ânsia de livrar-se da peça, transtornado pelo crime perpetrado. Já estava a imaginá-lo com os cabelos eriçados e fogo a sair pelas narinas!

Como não sou reacionária, entendo a reação de quem se opõe a minhas ideias, ademais porque o trabalho de educar exige muita paciência, e mesmo quando insistimos apenas em informar e esclarecer, há um limite dado pelo livre-arbítrio do outro, como lembra Vieira no Sermão do Espírito Santo: ‘O mestre na cadeira diz para todos, mas não ensina a todos. Diz para todos, porque todos ouvem; mas não ensina a todos, porque uns aprendem, outros não. E qual é a razão desta diversidade, se o mestre é o mesmo e a doutrina a mesma? Porque, para aprender, não basta só ouvir por fora: é necessário entender por dentro.’ É esse entendimento por dentro que diferencia o conhecedor do sábio, o acadêmico do professor, o ‘linguista’ do comunicador, a ditadura verbal da livre-expressão.

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Jornalista, radialista, editora, dramaturga, professora e pesquisadora de Literatura em Língua Portuguesa, em especial Padre António Vieira, tema de seu mestrado pela FFLCH-USP