Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Indivíduo e/ou sociedade?

Um rapaz invade a escola em que estudou, armado até os dentes, dispara contra crianças desprevenidas e comete suicídio, deixando um rastro de violência e tristeza. A notícia se espalha pelo planeta, discussões são propostas, soluções balbuciadas pelos meios de comunicação, a comoção se generaliza. Esse poderia ser o roteiro do mais novo sucesso cinematográfico norte-americano; no entanto, infelizmente, faz parte dos acontecimentos recentes no Rio de Janeiro.

Mais do que comentar o caso, exaurir o assunto ou esbravejar contra o assassino, indicações comuns ao conhecimento tácito, parece caber à sociologia a busca por compreender o que há de socialmente relevante. Nesse sentido, a primeira e norteadora pergunta, mediante a tragédia em Realengo, diz respeito às razões do atirador, ao processo pelo qual o referido indivíduo transformou o que pulsava como revolta interior, desejo oculto ou descontrole emocional, numa prática injustificável com drásticas consequências nas vidas de diversas famílias. Quais seriam os elementos geradores dos caminhos para responder ao questionamento recém-proposto? Desde já, os argumentos geneticistas, biológicos ou neurológicos, tanto por meu desconhecimento declarado, quanto por suas derivações, que podem chegar ao que no século 19 e início do 20 se traduzia na antropologia física e no racismo científico, serão considerados pressupostos secundários na tarefa de compreender (e não explicar) as razões do homicida de Realengo. Com efeito, tal postura não significa que os caracteres inatos não atuem de algum jeito no comportamento humano.

O campo escolar

Para as ciências sociais, parafraseando Max Weber, é interessante compreender a vida à nossa volta, que nos rodeia, pretendendo capturar as conexões e a significação cultural das suas diferentes manifestações. No infinito da realidade social, o sociólogo, sujeito finito por excelência humana, poderá engendrar um conhecimento reflexivo sobre ela, sustentando-se na premissa de que somente um fragmento limitado do infinito real poderá ser objeto de compreensão científica [cf. WEBER, Max. A ‘objetividade’ das ciências sociais. In: COHN, Gabriel. Weber (Coleção Grandes Cientistas Sociais). São Paulo: Editora Ática, 2005]. Fundamental neste instante é salientar ao leitor que o objetivo deste ensaio é oferecer subsídios destinados à reflexão sem representar o fazer científico, a despeito de carregar pretensões sociológicas. Se a sociologia permanece mirando um resultado satisfatório para determinar, em última instância, a preponderância da ação ou das estruturas na realidade social; se ainda está nesse emaranhado de sentenças fundadas em pesquisas sérias e teorizações concisas, ou não; se tudo isso fizer qualquer sentido, defender um posicionamento acerca dos condicionantes que, em tese, podem ser compreendidos na execução protagonizada por um jovem carioca no seu ex-colégio cintila como uma boa aventura intelectual.

Do estruturalismo ao individualismo metodológico, passando por sofisticadas percepções, os cientistas sociais e a própria filosofia tentaram designar os contornos mais próximos de quais os componentes nevrálgicos da conduta das pessoas. Por seu turno, a sociologia contemporânea, nas figuras consolidadas de Pierre Bourdieu e Anthony Giddens, para citar de forma caricatural os debates, sintetizou as concepções dos chamados clássicos e estabeleceu complexas versões relativas à temática.

Optou-se por seguir as colocações de Bourdieu, no intuito de pensar os fatores causais do nefasto evento fluminense. Não obstante, o envolvimento forte do campo escolar, de um lado por ter sido o local dos atos violentos, de outro por ser a sociabilidade do assassino durante grande parte da sua vivência, não deve se mostrar senão como o ponto de partida a ser ponderado. Na frase anterior, usou-se o termo campo escolar não por acaso, mas por se tratar da linguagem conceitual proposta por Bourdieu, na medida em que o francês desenha a realidade social com a imagem de microcosmos relativamente autônomos, os campos, que seriam universos intermediários nos quais estariam situados os agentes e as instituições que ‘produzem, reproduzem ou difundem a arte, a literatura ou a ciência’ [cf. BOURDIEU, Pierre. Os Usos Sociais da Ciência. São Paulo: Unesp, 2004], noutras palavras, mundos sociais que correspondem a leis sociais mais ou menos específicas.

A interiorização da exterioridade

Os pioneiros trabalhos de Bourdieu e seus parceiros de pesquisa que obtiveram maior sucesso estavam justamente relacionados ao estudo do campo escolar [cf. BOURDIEU, Pierre. A Reprodução. Rio de Janeiro: F. Alves, 1982; BOURDIEU, Pierre. Los Herederos: Los Estudiantes y La Cultura. Buenos Aires: 2002]. Sugerindo a definição de violência simbólica, o sistema escolar e a própria ação pedagógica deteriam o caráter de reprodução do arbitrário cultural dominante, mascarando-se com falsas alternativas de sucesso aos despossuídos do capital cultural necessário para resultados satisfatórios. A escola transformadora, dotada do esperançoso ideal de melhorias sociais, não passaria de uma falácia. As escolas brasileiras, vistas de dentro, para além dos seus muros, para além das matérias especiais feitas pelos grandes canais de televisão, observadas no calor do cotidiano, apresentam sinais de que a violência simbólica e a reprodução das desigualdades convivem com honestas tentativas de mudança. Estão presentes as considerações de Bourdieu, em geral e em princípio, é imperativo ressaltar. Só uma pesquisa de razoável densidade poderá concretizar com maior clareza a importância do capital cultural no desempenho estudantil médio, ou mesmo a amplitude das incontáveis violências simbólicas exercidas por todos os agentes aleatoriamente no dia-a-dia das instituições de ensino básico.

Todos os campos são campos de força e de disputa, e a posição ocupada por cada agente na estrutura da distribuição do capital específico de cada campo vai encaminhar as suas possibilidades de atuação. Assim, esses agentes se constituem enquanto agentes na medida em que, conforme Bourdieu, no ritmo peculiar da sua existência nos campos, constroem o habitus, isto é, suas disposições permanentes e duradouras, o sentido do jogo, as disposições incorporadas que orientarão as suas tomadas de decisão. Quando Bourdieu evoca o conceito de habitus, refere-se às ‘estruturas sociais de nossa subjetividade’, construídas em princípio na vivência das primeiras experiências sociais (habitus primário) e, posteriormente, da vida adulta (habitus secundário). Em síntese, ele é a maneira como as estruturas sociais se imprimem na racionalidade e no corpo dos agentes, por meio da interiorização da exterioridade, um ‘sistema de disposições duráveis e transponíveis’, em que as múltiplas respostas às variáveis situações são dadas a partir de um conjunto limitado de esquemas de ação e pensamento [cf. BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010; BOURDIEU, Pierre. Razões Práticas. São Paulo: Papirus, 1996; BOURDIEU, Pierre. A Distinção. Porto Alegre: Zouk, 2008; CORCUFF, Philippe. As novas sociologias: construções da realidade social. São Paulo: Edusc, 2001].

Esboços de reflexão

Longe de ser um reflexo das estruturas sociais, sempre essenciais e cujas formas apenas se modificariam; longe também de constituir um indivíduo racional ao extremo, indiferente às coerções exteriores, às influências estruturais, Wellington Menezes era um jovem que tinha o campo escolar marcando a sua trajetória, pois se evidenciou que se tratava de uma pessoa excluída, com poucos amigos, de socialização dificultosa, a todo o momento alvo de violência física e simbólica dos colegas. Imaginar o processo de construção do habitus, seus esquemas de ação e pensamento, além das disputas que ele travava no campo escolar, no qual foi um dos agentes ‘dominados’ por longo período, não é justificar o crime, é desencadear um percurso que demonstra rejeição, tristeza, inconformidade e, enfim, descontrole. Há mais a dizer.

Noutro polo, uma análise da sociedade em que o assassino estava vinculado, em linhas gerais, encontrará a força dos modernos meios de comunicação de massa, sobretudo da indústria do entretenimento. Ao pensar o campo cinematográfico, ou o ‘campo do entretenimento’, numa expressão de quem vos escreve, sob o prisma dos conteúdos e dos significados culturais que estes disseminam, será imediata a referência a muito sangue, tiroteios, perseguições e serial killers, tudo isso travestido de filmes, novelas ou programas televisivos, jogos de vídeo-game e seus genéricos. Operariam os mass media espelhando uma espécie de ‘dispositivo pedagógico’ [cf. FISCHER, Rosa Maria Bueno. ‘O dispositivo pedagógico da mídia: modos de educar na (e pela) TV’. Revista Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 28, nº 1, p. 151-162, jan./jun. 2002], participando da subjetivação dos agentes, emoldurado pela sociedade ocidental contemporânea capitalista? Quem diz, com robustez de alcance, o que é esteticamente belo ou feio, sem considerar as complexidades da recepção da mensagem, nos tempos atuais? De fato, naqueles que nada fazem além de consumir as mercadorias, a saber, de qualquer que for o viés, material ou simbólico, as implicações, sequelas ou decorrências dos espetáculos midiáticos regados a violência poderão ser medidas unicamente se problematizadas pelas ciências sociais, com método e intensidade teórica.

Malgrado este ensaio nada tenha de ciência, quem sabe resquícios de pretensões sociológicas, por aqui estiveram esboços de reflexão, recheados da ambição de driblar as contingências da doxa, do conhecimento tácito – um pouco, que seja. A tragédia de Realengo pode ser vista com as lentes que estiverem em jogo, podem ser fruto das ações ou das estruturas, só não podem (e nem devem) originar sentimentos coletivos em favor de práticas que, está na história, contribuíram como exemplos repugnantes de intolerância fascista.

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Sociólogo, mestrando no PPG Sociologia/UFRGS, bolsista Capes/Proex e jornalista