‘Nada é pior do que tudo que você já tem no seu coração mudo’, diz a letra de uma canção pouco lembrada de Caetano Veloso. O coração mudo é aquele de quem não canta para espantar seus males. Mas quem é você que cala em seu coração um viveiro surdo de flores do mal? (Antes da resposta: Bachelard disse que, se fosse psiquiatra, aconselharia ao doente a leitura em voz alta de um poema de Baudelaire que tem como dominante a vogal ‘a’ que, apenas pensada, já mobiliza as cordas vocais; que, apenas vista, já desperta a vontade de cantar; que nos dá calma e unidade; que ‘nos ensina a respirar com o ar que repousa no horizonte, longe das paredes das prisões quiméricas que nos angustiam’).
Mas então, quem é você? Pelo seu coração mudo responde o poeta Noel Arnaud: ‘Sou o espaço onde estou.’ Que espaço é esse? Holanda, Columbine, Realengo? Segundo o governador do Rio, você é um animal e, portanto, seu espaço deve ser a natureza. Bem que você se lembrou dos animais, quando, afinal, se abre numa carta em que predominam as vogais fechadas: impuros, adúlteros, luvas, virgem, sepultamento, despido, seguidor. Mas animais não escrevem cartas, não racionalizam os motivos de seu ataque às presas, não atacam seres da mesma espécie, só matam por sobrevivência e não praticam o bullying de que você foi vítima. Além disso, onde é que se produzem e se comercializam armas, onde é que se treina o uso das armas como você tanto treinou? Parece que o governador estava errado nesse ponto (como estava errado em não prover a escola pública de um sistema mais eficaz de segurança): o espaço em que você se constitui deve ser o mundo real dos humanos – a civilização.
Sobre a sua vida, sobre a nossa vida nesse contexto, convém escutarmos uma voz que não se cala – a de Freud: ‘Até que ponto a espécie humana conseguirá dominar a perturbação de sua vida comunal causada pelo instinto de agressão e autodestruição? Os homens adquiriram sobre as forças da natureza tal controle que, com sua ajuda, não teriam dificuldades em se exterminarem uns aos outros. Sabem disso, e é daí que provém grande parte de sua atual inquietação, de sua ansiedade, de sua infelicidade.’ Convém sublinhar aqui a palavra atual: talvez não tenha sido sempre assim, talvez o futuro não venha a ser assim. Por um mundo melhor para as crianças que sobreviveram ao seu ataque, homem civilizado, as pessoas se dão as mãos em torno da Escola Tasso da Silveira – nome de um poeta que cantou: ‘mão de puro mistério / que tomará minha mão / e me levará sonhando / para além deste silêncio, / para além desta aflição’.
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Professor e escritor, Curvelo, MG