Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A morte de um jornalista

Um amigo partiu desta vida, e dizer amigo sem adjetivos basta, são poucos os amigos cuja lealdade não admite dúvidas e cuja lembrança é para sempre. Elpidio Reali Jr., que nunca chamei Elpidio, era o Reali e ponto final, pertencia e pertence a esta categoria. Faz pouco tempo saiu o livro das suas memórias, Às Margens do Sena, longo depoimento recolhido por meu filho, Gianni, e prefaciado pelo acima assinado. E ali eu dizia que quando nos encontrávamos, frequentemente nas cercanias de uma garrafa de bom vinho, podíamos conversar horas a fio sem tropeçar em um único, escasso ponto de discordância. Conhecíamos um ao outro passo a passo no espaço alastrado entre o coração e a alma.

Sim, verdade factual é que já tivemos opiniões diferentes no confronto entre vinhos franceses e italianos, mas também a respeito desta questão crucial acabamos por convergir para uma posição comum. A amizade tinha raízes. Meu pai, Giannino, conhecera em 1947 o pai do Reali, o primeiro Elpidio, então diretor da Interpol, policial culto e competente. Ambos estavam em ação por causa do rapto presumido de um filho de Francisco Matarazzo II, cada qual ao sabor de suas funções, o policial e o jornalista.

Adulação desbragada

Descobriu-se finalmente que o plano do sequestro era da lavra do sequestrado, Eduardo, e contava com a desastrada colaboração de dois empregados italianos das IRFM, Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo, os engenheiros Malavasi e Comelli dispostos a arcar com o papel de sequestradores. Resgate entregue, tramoia revelada logo após. Eduardo, o filho que pretendia extorquir dinheiro do pai Chiquinho, safou-se incólume, embora cuidasse de levar vida apartada. Os italianos, em compensação, passaram uma esticada temporada na cadeia. O policial e o jornalista lamentaram o desfecho e ficaram amigos.

Quanto a mim, dei com o Reali pela primeira vez no vídeo. Eu acabava de regressar da Itália, onde havia exercido a profissão por três anos e meio, primeira metade de 1960, e o Reali era repórter de campo em jogos de futebol televisados, o repórter Canarinho da Record como o apelidara Silvio Luiz. Acabamos por nos conhecer em Paris, na década de 70, onde ele voluntariamente se exilara com a mulher, sua eterna companheira Amelinha, e filhas, depois de receber o Prêmio Governador do Estado de São Paulo como melhor radialista esportivo. Na hora da entrega, dedicou-o aos colegas presos pelo terror de Estado, infelizmente impossibilitados de concorrer.

Há o indivíduo, o cidadão, o profissional. Entre eles, os elos indissolúveis da coerência no respeito dos princípios e dos valores. Leio nos obituários que Reali foi um grande jornalista. Eu diria que, sobretudo, foi raro, jornalistas que honram a profissão há poucos. Pouquíssimos. A maioria vive no terror de perder o emprego, quando não se trata de um daqueles que se aboletaram em posições de comando na qualidade de sabujos do patrão. Pergunto-me se têm consciência da adulação desbragada a que se entregaram, se ao se olharem no espelho percebem o lacaio, ou se são sinceros na submissão porque a carregam no sangue ou se compartilham em harmonia integral das ideias de quem lhes paga o salário e lutam bravamente a favor dos interesses do próprio.

A serviço da consciência

Por exemplo. O que vai pelas entranhas da revista Época, que há duas semanas dedicou uma reportagem de capa ao relatório da PF sobre o famigerado valerioduto para divulgar uma versão manipulada, esconder a personagem principal do enredo, o banqueiro Daniel Dantas, e esquecer a Globo, também envolvida no episódio? Sei tão somente que a mídia nativa reservou estrondoso silêncio ao texto autêntico publicado por CartaCapital, em seus trechos principais na semanal e integralmente pela internet.

Não é surpresa, está claro, que Época não peça desculpas aos seus leitores, ou que a mídia nativa não repercuta a verdade factual, a soletrar o que até hoje impávida sustenta, ou seja, a existência do mensalão que o relatório nega. Contra esta caterva de escribas e oradores a soldo do privilégio não há verdade factual que resista.

A diferença, no caso de Reali, e a raridade estão no fato de que ele serviu antes de mais nada à sua consciência. E eu aqui estou, saudoso, e de súbito me ocorre a imagem do jovem loiro a correr à margem de um gramado com os cachos ao vento.

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Jornalista, diretor de Redação da CartaCapital