Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Meninos choram!

Que o gosto pela leitura infantil é algo que pais e educadores almejam interiorizar em toda criança, todos sabem. Também já até cansou de se ouvir e de se dizer que a capacidade modificadora da literatura realmente existe e é muito maior do que imaginamos. Mas e quando a literatura infantil é colocada no mesmo pacote que um tema polêmico – as várias orientações sexuais?

A literatura infanto-juvenil possui diversos temas, modos de se escrever, mundos desvendáveis em meio a tantas palavras, mas algo que se percebe é a predominância do mesmo tipo de criança ou adolescente retratado nesses livros. Quando falo em tipo, quero dizer algo ainda mais profundo e amplamente subjetivo, quero dizer a sexualidade. Sim, a sexualidade, um dos temas mais complexos, polêmicos e íntimos, precisa ser debatida e enfrentada de frente, inclusive na literatura infanto-juvenil.

Acontece que a maior parte da literatura voltada para crianças e adolescentes não engloba anseios que fogem do universo heterossexual. Não se vê muitos livros em que uma adolescente, no lugar de se apaixonar pelo professor, apaixona-se pela professora. E isso acontece. É real.“Na literatura, o papel da menina e do menino são muito tradicionais. Os valores homossexuais são deixados de lado. Isso promove o preconceito”, é o que diz a editora Laura Bacellar, uma das sócias da Malagueta, editora especializada em literatura feita por lésbicas ou para lésbicas. Esse tradicionalismo faz com que gays e lésbicas não sejam representados como leitores adolescentes, o que acaba contribuindo para que eles se sintam ainda mais marginalizados perante a sociedade.

“Um livro que tratasse disso teria ajudado”

Segundo a psicóloga Cristiane Baubab, o tema é mais complexo do que parece, mas descarta o argumento usado por muitos de que esse tipo de literatura pode influenciar crianças e adolescentes a serem homossexuais: “A homossexualidade envolve muitos aspectos. Ninguém se torna um homossexual porque leu a respeito ou assistiu a um filme com o tema. A orientação sexual envolve muitas outras questões – biológicas, emocionais, culturais, ambientais. Isso não é uma coisa que se pega de ver, ler ou saber que existe”, reforça ela.

Editoras grandes já têm investido – apesar de timidamente – em livros com essa temática. Neles, não são só retratados os anseios de meninos que queriam ter nascido meninas ou que se apaixonam pelo colega de turma. Também são retratadas crianças filhas de dois pais ou duas mães. Essa outra visão, a de que é completamente normal ser “diferente”, é importante para que a criança cresça com tolerância e noção de realidade, inclusive de si mesma.

Desde pequena, Gabriela sentia que havia algo diferente com ela e hoje arrisca dizer que naquela época já sabia que isso dizia respeito a sua homossexualidade. Apesar de ter essa semiconsciência, ela não queria acreditar no que sentia, mas acha que poderia ter sido diferente se ela tivesse tido contato com algum livro que tratasse do assunto: “Saber que eu gostava de meninas, eu sempre soube, mas não era algo presente, não era algo que eu tinha contato. Acho que só fui ter uma noção maior quando tinha uns 13 anos e comecei a assistir filmes sobre o assunto. Então eu tenho certeza que se eu tivesse lido algum livro que tratasse disso como algo `normal´ isso teria ajudado bem mais.”

Literatura como suporte

Mas a visão de que a época para se tocar nesse assunto não é entre a infância e adolescência existe e ainda é predominante. Giullia Braile, estudante de Arquitetura, acha importante tratar desse tema, mas acredita que só adolescentes de mais 15 anos é que devem ler esse tipo de literatura: “Acho menos que isso cedo demais.” Rafaela Gimenes, estudante de Letras, acha que o tipo de abordagem que se faz do assunto é o mais importante e acha válida a existência dessa literatura como forma de diminuir o preconceito: “Aceitação, autoconhecimento, não achar que é um absurdo se sentir em dúvida… Acho que se houver um conhecimento do assunto logo na infância, a coisa tende a melhorar.” Como futura professora de língua portuguesa e literatura, ela afirma: “Usaria esse tipo de livro em sala de aula.”

Independente da opinião – e antes de tudo –, escola e pais têm que entender que falar sobre o assunto não é, de forma alguma, um método para transformar crianças e adolescentes em homossexuais ou transgêneros – mesmo porque isso não é possível –, mas mostrar para essas crianças que ter dois pais ou duas mães não é nada demais e que ser homossexual, bissexual ou transexual não é um crime e nem passa perto de ser uma anomalia. É apenas mais uma possibilidade de laço afetivo, nem melhor e nem pior do que a heterossexualidade. Usar a literatura como suporte para (mais) isso, como já estamos cansados de saber, parece ser uma boa opção.