Sei que estou indo contra a corrente dominante na opinião pública. Aliás, opinião única, pois nenhuma dúvida existe na condenação praticamente unânime do MST na imprensa, nenhum contraponto, nada ou quase nada do ponto de vista dos próprios integrantes do movimento ou, ainda, dos que de uma perspectiva democrática buscam saídas para a desigualdade e a exclusão que marcam nossa estrutura social.
Que jornalismo é esse? Lamentável! Podemos discordar do movimento, de seus ideais, de seus métodos, mas tentar entender a questão em jogo é o mínimo que se espera no debate público.
Provavelmente, não existe tabu maior no Brasil do que a questão agrária – questão velha de séculos. Mas nada mais atual, pois não se limita ao campo em si, à sua população. Racismo, machismo, desigualdades de todos os tipos e tantas outras das nossas mazelas têm, lá bem escondidas, as suas raízes na estrutura agrária. E, o que de longe é mais grave, o nosso futuro se decide no modo como hoje definirmos a nossa relação com o enorme patrimônio comum que temos, o território e seus recursos.
Questão complexa, sem dúvida. Mas onde está o debate? Será que o sacrossanto privilégio de uns poucos em colocar cerca em volta de parcelas do território – muitas vezes baseadas no roubo legalizado por meios escusos – está acima do bem comum?
O centro de debate
A modernidade do MST está em nos interpelar sobre isto, sobre o passado de nossa matriz agrária e sobre o futuro no uso dos nossos recursos naturais, tendo a terra no centro. A sua luta social não pode ser vista fora de tal quadro. Mesmo enfrentando diretamente os donos de terras, gado e gente – pois esta é ainda uma lamentável característica dos proprietários no campo – os sem-terra, ao fazer ocupações de fazendas, trazem à tona um aspecto fundamental sobre a possibilidade de um desenvolvimento democrático sustentável no Brasil. Somos, dos grandes países do mundo, o de menor densidade demográfica, o mais privilegiado em termos de recursos naturais – terra, água, biodiversidade – e, ao mesmo tempo, o mais desigual e, tragicamente, o mais predador. Até quando, em nome de uma visão ainda estreita, poderemos sustentar o direito de agir nesta parte do Planeta Terra de forma tão irresponsável social e ecologicamente?
O futuro, o nosso futuro e não só o dos sem-terra, depende de uma mudança fundamental na relação com o patrimônio natural que temos. Sem-terra, seringueiros, quebradeiras de coco, os próprios povos indígenas, heranças de um passado selvagem e excludente, com suas lutas de resistência estão chamando atenção para a forma devastadora e insustentável de nossa estrutura e do processo de desenvolvimento no campo.
O sucesso de nossa agropecuária atual, apregoada como expressão de nosso domínio de tecnologias de produção e de nossa competitividade – no chamado modelo agroindustrial exportador – esconde uma verdadeira tragédia. Juntando com a extração e exportação de minerais, com o deserto verde das florestas homogêneas de eucalipto para celulose, que nos tornam imbatíveis no mercado mundial, a nossa agricultura exporta para o mundo a seiva viva da nação, tanto da vida natural como da sociedade, em troca de um duvidoso superávit nas transações comerciais. Estamos comprometendo o presente de muita gente excluída do processo e, o que é pior, o futuro de nossos(as) filhos(as) e netos(as), o futuro de muitos para além das fronteiras nacionais.
O centro de debate sobre o impacto da ação do MST deveria ser o caráter antidemocrático e insustentável, do um ponto de vista ambiental, da atual forma de apropriação da terra e de seus recursos. Na luta dos sem-terra está a questão da degradação dos rios, da destruição das florestas, da agressão à biodiversidade e à sua privatização, dos duvidosos benefícios dos transgênicos, tudo muito além do monopólio da propriedade da terra, em si algo intrinsecamente absurdo na perspectiva dos direitos humanos, minha referência. Está em questão o modo como nos relacionamos com a terra e o que ela contém.
Berço de um novo Brasil
Talvez o mais triste na conjuntura atual, de novo recrudescimento das ocupações do MST, seja tentar tapar o Sol com a peneira. Limitar o debate a uma discutível agressão à propriedade da terra ou, mais genericamente, às leis e instituições, é recusar-se a ver de frente uma lei férrea constitutiva da sociedade brasileira: os privilégios adquiridos de proprietários privados do patrimônio coletivo contra direitos de cidadania e contra a reversão de um modelo predador e excludente. Leis são feitas para serem respeitadas, sem dúvida. Mas leis exprimem relações. Na história humana não faltam exemplos de mudanças e avanços que precisam ser feitos para que leis dêem conta da nova realidade. E os movimentos sociais, como o MST, em sua truculência, acabam funcionando como o anúncio da mais radical modernidade que clama por emergir.
Não tenho dúvidas em afirmar que na luta dos sem-terra é, acima de tudo, o nosso futuro que está em questão. E não o passado. Afirmo isto mesmo reconhecendo que a forma da luta tem muito de primitivo e condenável. Sou um radical pacifista, praticante incondicional da não-violência. Mas fico em dúvida se a possível violência dos sem-terra é da natureza de sua luta por um novo modo de relação com a terra ou tem mais a ver com as formas como os proprietários de séculos reagem na defesa de seus inegáveis privilégios.
Obrigado ao MST por nos fazer pensar no futuro e na possibilidade que ainda temos de rever isto. Coragem, Lula, o momento é de inverter uma lógica e democratizar o campo, tornando-o o berço de um novo Brasil democrático e sustentável. Aliás, a pressão do MST é bem-vinda. Quem sabe o governo e nós todos acordemos para o fato de que não dá mais para adiar medidas no sentido de mudar o rumo de uma estrutura agrária que nos está levando ao desastre.
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Sociólogo, diretor do Ibase