Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Exercícios de memória seletiva

O Estado de S. Paulo publicou na terça-feira (7/6) reportagem (“Dante Alighieri comemora um século”) sobre o centenário do Colégio Dante Alighieri, um dos mais prestigiosos de São Paulo. Não há no texto qualquer informação sobre o passado fascista da instituição.

Passado fascista. A expressão é dura, mas verdadeira. Entre outras fontes que o atestam há documentação policial aberta para consulta desde 1994, quando se tornou possível ter acesso a fichas e outros registros do Deops (Departamento de Ordem Política e Social) paulista transferidos para o Arquivo do Estado em 1991.

No livro Os seguidores do Duce: os italianos fascistas no estado de São Paulo (Arquivo do Estado, Imprensa Oficial, 2001), de Viviane Teresinha dos Santos, resultado de uma pesquisa nesses arquivos, encontra-se a seguinte passagem:

“[a] polícia política interveio [em 1943] num dos principais redutos de doutrinação fascista sobre a juventude ítalo-brasileira: o Instituto Médio ‘Dante Alighieri’. Seus diretores vinham especialmente da Itália e recebiam subsídios do governo fascista. O ensino era praticamente todo orientado em língua italiana e muitos dos professores e alunos se cumprimentavam com o clássico gesto fascista. O instituto induzia os docentes (italianos ou ítalo-brasileiros) a se inscrever no Fascio e as crianças, no grupo Balilla daquele estabelecimento. (….)

“As cartilhas e livros didáticos adotados pelas escolas italianas no Brasil vinham diretamente da Itália, obedecendo rigorosamente às diretrizes ideológicas do regime fascista.”

Nacionalismo varguista

A preocupação com o idioma era decorrência de uma campanha que nacionalizou todas as escolas estrangeiras a partir de 1937 (no Rio Grande do Sul) e de 1938 (no resto do país, em cumprimento a um decreto-lei assinado por Getúlio Vargas). Embora uma lei estadual de 1920 tivesse determinado a supressão do ensino em italiano em São Paulo, ninguém havia mexido com o Dante e com outros colégios.

A doutrinação fascista não incomodou o chefe do Estado Novo e seus auxiliares até que, em agosto de 1942, submarinos alemães – e pelo menos um submarino italiano − afundassem navios brasileiros de carga e de passageiros, o que levou o governo, sob grande pressão de massas nas ruas em plena ditadura, a decretar guerra à Alemanha e à Itália. O Deops, antes disso, caçava apenas comunistas e outros opositores. Os presos eram submetidos a torturas e outras violências.

No mesmo livro se lê:

“A educação estadonovista fazia parte de um projeto estratégico de mobilização controlada. O Estado deveria ‘tutelar’ a juventude, modelar seu pensamento e ajustá-la aos objetivos do governo autoritário brasileiro, o que seria possível através de uma pedagogia que inculcava os princípios de disciplina, organização, obediência e respeito à ordem e às instituições governamentais. A exemplo da Juventude Nazista e das Organizações Juvenis de Italianos, Vargas criou a Juventude Brasileira através do decreto-lei 2.072, de 8 de março de 1940, visando a formação de uma ‘consciência patriótica’, do ‘amor ao dever militar’ e do ‘hábito disciplinar’.”

Arrastado à guerra em aliança com Estados Unidos e Inglaterra (por sua vez aliados à União Soviética), Getúlio abandonou gradualmente a inclinação para o fascismo que tornara explícita em discurso aos chefes militares no fim de 1940. O Deops passou a se preocupar também com fascistas e nazistas. Em alguns casos, a perseguição se estendeu a cidadãos estrangeiros que não tinham nada a ver com o peixe.

Ensinamentos históricos

Por que deveria necessariamente o Estadão, ao falar do centenário do Dante Alighieri, mencionar o período de doutrinação e enquadramento político fascistas? Porque o fascismo de Benito Mussolini – filho imediato da Primeira Guerra Mundial e ramo matricial entre as ideologias que conduziram à Segunda Guerra – é, desde seu surgimento, um dos fenômenos mais importantes da história mundial (está vivo, entenda-se, embora não possa mais usar os canais sociopolíticos do passado).

A matéria passa ao largo dessa questão. Num quadro diacrônico, informa-se que, em 1942, “o Brasil rompe relações diplomáticas com a Itália. Proíbe-se a língua italiana no colégio, que em 1943 passa a se chamar Visconde de São Leopoldo e sofre intervenção federal na administração”. A percepção da maioria dos leitores terá sido: infelizmente, devido à situação de guerra, o colégio, por ser de origem italiana, levou a breca. Ponto.

Peso da ideologia fascista

Não é possível entender certos fenômenos da política paulistana, paulista e brasileira sem compreender o peso da ideologia fascista no passado. Sobretudo porque a imigração italiana foi de longe a mais importante na cidade e no estado.

Ainda em 1953, relata Julio Fombellida Pita, imigrante espanhol, seu patrão, Nicola Cencini, dono de uma barbearia na Avenida São João, mostrava a um canto o manganello, bastão trazido da terra natal que, dizia, teria o maior prazer em usar novamente para bater em comunistas. “Para horror do barbeiro Julinho, em cujo coração morava o avô, republicano que a perseguição de Franco obrigara a se exilar na França” (Diário de S. Paulo, 2004, trecho de crônica minha).

O Dante Alighieri − que tenha longa vida como importante colégio da classe média paulistana − pode não querer evocar esse período de sua história. É um equívoco, antes de mais nada pedagógico, mas é um direito da instituição. O jornal não tem esse direito. Sua lógica e seus compromissos são outros.

Dar vida aos arquivos

A simples existência de registros acessíveis é condição necessária mas não suficiente para que se tirem deles os ensinamentos que encerram. Entre 1996 e 2008 foram publicados 14 volumes da série “Inventários do Deops”, entre eles o citado no início deste artigo. Que divulgação tiveram, fora de alguns meios acadêmicos, essas pesquisas feitas no Arquivo do Estado de São Paulo?

Após tanta batalha pela abertura da documentação do período 1964-1985 – batalha inconclusa (ver “WikiLeaks para a ditadura”) −, poderá haver frustração caso a imprensa não ajude a divulgar as descobertas e estudos sérios que serão feitos a partir dela.

Tão importantes quanto alguma informação indireta sobre a repressão criminosa do regime militar, ou mais, serão revelações sobre o papel de políticos e funcionários civis, empresários, empresas, organizações, prelados, intelectuais, artistas, meios de comunicação, personalidades midiáticas que o apoiaram, ou mesmo o serviram, e seguem faceiros. Isso vai incomodar.