Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Veracidade subjetiva e a paz de espírito

‘Twitter, my friends!’

Assim falou Plínio de Arruda Sampaio. E prosseguiu:

‘É twitter! Eu sou o maior twittador agora.’

Com essa conclamação, o candidato à presidência da República pelo PSOL intimou seus seguidores a ‘twittar’ e entrar ‘diretamente’ no debate político. Aos 80 anos de idade, vem esbanjando jovialidade – e não apenas quando demonstra familiaridade com certas modas tecnológicas. No debate da TV Bandeirantes, na quinta-feira (5/8), era ele o mais bem-humorado, o menos previsível, o menos careta. Plínio tinha mais frescor e mais presença de espírito. Roubou a cena, como disseram.

Nos dias subsequentes, comentários nos jornais encontraram uma explicação plausível para uma performance tão descontraída e desapegada: Plínio não tem nada a perder. Do alto de seu 1% nas pesquisas eleitorais, pode arriscar tudo, pois, mesmo perdendo tudo, não perderá grande coisa. E até poderá sair ganhando, ou seja, poderá ganhar simpatia, poderá marcar positivamente a imagem do PSOL como um partido que não tem nada a esconder. Se demonstrar que não está disposto a trocar voto por fingimento, ele tem chance de sair no lucro, mesmo que não conquiste voto.

A explicação parece óbvia, mas, no fundo, não dá conta de decifrar o fenômeno chamado Plínio de Arruda Sampaio (aliás, quanto ao sobrenome Arruda, ele faz piada, dizendo que não é ‘o Arruda do DEM’, aquele tal, de Brasília, mas é ‘o Arruda do Bem’). Enfim, a explicação parece óbvia, mas é anêmica. O brilho particular dessa candidatura nanica não se deve simplesmente à condição daquele que, não tendo nada a perder, sai por aí bancando o franco atirador, como também já se disse. Ele não está fazendo o tipo ‘aventureiro feliz’. Há mais elementos nessa história, há algo mais interessante aí. No meu modo de ver, Plínio se comunica bem porque está bem – em tempo, é justamente por isso que o tema me interessa, por se referir à qualidade da comunicação política entre um candidato e seu público –, porque está inteiro no que diz. Ele dá a sensação de não ter uma agenda oculta. Ele olha no olho do interlocutor e manda ver. Que outros candidatos podem se abrir da mesma forma?

É por aí que começo a minha discussão.

Sejamos acadêmicos…

É notório, notável e incrível como o candidato do PSOL está de bem consigo próprio. Ele é ‘o Plínio do bem’, como brinca, e também o Plínio de bem. É por isso, também, que consegue olhar direto nos olhos da gente sem pestanejar, sem piscar, sem vacilar, e dizer o que pensa com naturalidade. Ele não tem rancor ou raiva; tem apenas determinação. E aí fazer essa conversa olho-no-olho – para usar aqui a expressão preferida do jornalista Celso Nucci, quando discorre sobre comunicação pública.

Não se pode afirmar que Plínio enuncie ‘a’ verdade, uma vez que suas teses são, no mínimo, controversas, e às vezes carregam uma nostalgia utópica com toques de baile da saudade. Mas, de outro lado, não há dúvida de que ele fala ‘a sua’ verdade, sem torcer nem edulcorar. Pode parecer pouco, mas isso o diferencia radicalmente dos outros. Nesse sentido, tenho a impressão que o diferencia não é tanto o programa, mas a postura pessoal, embora as duas coisas não se desvinculem por inteiro.

Quero me deter um pouco mais sobre isso de alguém falar ‘a sua’ verdade, uma verdade na qual acredita sinceramente. Peço licença para um breve exercício de pedantismo. Vou citar um filósofo que andou em voga de algumas décadas para cá, Jürgen Habermas. Se o leitor vai se espantar, vai se abespinhar, vai falar ‘ah, assim não dá’, o problema é do leitor. Eu vou citar Habermas assim mesmo.

A certa altura da sua Teoria da Ação Comunicativa, o filósofo alemão se refere à ‘veracidade subjetiva’ como uma das características da fala do sujeito orientado para o entendimento. Tem a tal ‘veracidade subjetiva’ aquele que expressa uma idéia que, em sua consciência, de boa fé, ele toma por verdadeira. Nesse caso, ‘a intenção expressada pelo falante coincide realmente com o que ele pensa’, escreve Habermas. Poderíamos chamar a isso de honestidade intelectual; rigorosamente, a veracidade subjetiva seria apenas um dos aspectos daquilo que costumamos chamar de honestidade intelectual. Tanto que Habermas lista de três pretensões de validade a ser atendidas pelo cidadão que se orienta para o entendimento. As outras duas são a ‘retidão normativa’ e a ‘verdade proposicional’, das quais não vou me ocupar agora. Fiquemos, então, com esse requisito apenas, o da veracidade subjetiva, ou, em outras palavras, fiquemos apenas com essa parcela do que poderia ser a honestidade intelectual. Pronto. Fim da citação de Habermas.

… mas não sejamos tão complicados

A gente olha nos olhos apertados de Plínio de Arruda Sampaio e somos convidados a crer que ele crê na coincidência entre o que diz e o que pensa. Ele parece, no mínimo parece, acreditar que o que diz coincide com o que pensa. Não é pouco, não é mesmo. Ao vê-lo discursar, o espectador não se vê surpreendido pela desconfiança de que, em privado, ele diria algo diferente. Não há sinais de que ele nos esconda uma parte do que pensa. É fantástico.

Outra coisa, totalmente outra, é saber se o que ele diz é verdadeiro. Ou, em outras palavras, outra questão seria saber se, verdadeiramente, o que ele prega representa a melhor solução para o Brasil. Devo, nesse ponto, deixar bem claro o que penso – o que também não sei se é efetivamente verdadeiro, mas ao menos é o que penso que penso. Devo declarar que, a meu juízo, as teses do PSOL nem sempre conjuminam com os desafios postos por essa outra categoria discursiva, essa tal a que damos o nome de realidade. Respeito, respeito muito alguns dos integrantes do PSOL, como o deputado federal Chico Alencar, entre outros, mas não me vejo sinceramente convencido das propostas que os unificam. Por vezes, tenho a impressão de que eles habitam outro planeta, e, nessas horas, repito comigo mesmo que o pessoal do PSOL vive no mundo da PLUA.

O que não importa. Não estou aqui para julgar que carta-programa é melhor, a desse partido ou daquele outro. Não sou comentarista político, nem cabo eleitoral de um ou outro. Falo sobre comunicação, ou, ao menos, procuro falar sobre isso e ser útil aos interessados no assunto. O meu ponto é procurar entender por que um dos candidatos, o Plínio de Arruda Sampaio, consegue uma comunicação com o público que, se não leva à cooptação e ao voto, se não serve para ganhar a eleição, ao menos inspira confiança, não no enunciado, mas no enunciante (sim, a palavra não existe no dicionário, mas você entendeu).

Se é verdade que, ouvindo o Plínio, a gente, ainda que não concorde com o que ele diz, tende a acreditar que ele acredita no que diz – e, logo, acredita que ele não está tentando nos tapear –, temos aí um ponto que merece atenção. Ele nos propõe um jogo limpo, e por isso se sobressai. Ele não é o que é por não ter nada a perder, mas talvez por não ter nada a esconder. Aí está sua veracidade subjetiva, uma condição que quase nunca a gente encontra num político.

Eu vi o debate na Bandeirantes. Senti sono, mas resisti. Às vezes, tive a sensação de que ele, o Plínio, funcionava como um anti-ponto-de-fuga em geometria. O ponto de fuga, sabemos, é aquele que, sem estar incluído nos quadrantes e na superfície que encerram o desenho, funciona para organizar as retas e semi-retas na folha de papel. É aquele para o qual convergem as linhas da perspectiva. O anti-ponto-de-fuga é o oposto disso, mas ainda funciona como a referência a partir da qual podemos compreender as inclinações dos demais. Na arena do debate, ele nos ajudava a entender a lógica dos outros, os que têm chances de vencer o pleito. Atuando no ‘espaço off’, servia para realçar os contrastes. Em lugar de representar o ponto para o qual as linhas convergem, representava o ponto do qual elas divergem. Plínio era o coro crítico daquele teatro, era um ET mais outsider que os jornalistas que fizeram perguntas.

Alguém dirá que todos os fundamentalistas são assim. Fechados em seus princípios supostamente puros, eles não concedem nada, nunca, e seguem adiante, possuídos pelo gozo de se supor prenhes da verdade absoluta. Eles nada têm a esconder, também, e em seus olhos se nota a luz desinteressante do fanatismo. Mas não é disso que se trata, aqui. Existe o elemento do humor, bastante acentuado, na comunicação de Plínio de Arruda Sampaio – e humor é algo que não se mistura com fanatismo e ou fundamentalismo.

A certa altura do debate, Plínio fez piadas a respeito do ‘bom-mocismo’ dos outros três debatedores, e eu fiquei pensando nele como uma forma de ‘bom-velhismo’, o bom-velhismo que é seu nirvana total. Com seu 1%, ele, que é católico, está no seu auge espiritual. Não precisa de mais do que isso para estar feliz. Ele se realiza e, sem ponta de culpa, se diverte largamente. Ele está lá por missão, é verdade. Mas também está lá a passeio. Eis aí outro aspecto que distingue a comunicação que ele é capaz de pôr em marcha.

Eu via o debate, pensava nisso, pensava em bom-velhismo, pensava em Habermas, pobre de mim, e pensava que teria um artigo para escrever, pobre de você. Pensava na comunicação olho-no-olho com Plínio. Não penso o que ele pensa. Não concordo com o que ele enuncia. Mas, mesmo assim, vejo nele um homem em paz de espírito. Ele não é fanático, não é um profeta dos fanáticos, é apenas um ego tranqüilo, que, mais do que não ter nada a perder, não deve nada a ninguém.

Conheço Plínio de Arruda Sampaio de outros carnavais, de outras quaresmas, de outras procissões. Nunca o admirei tanto como agora.

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Jornalista, professor da ECA-USP