O que é que entendemos por liberdade de imprensa? De onde ela vem? Por que ela existe? Por que a democracia depende dela? Nas faculdades, os alunos aprendem, é claro, que o direito à informação é uma garantia fundamental, mas não discutem as razões disso. Deveríamos investir mais tempo na compreensão dessas ideias. Se entendermos as raízes históricas e políticas da liberdade na democracia, principalmente da liberdade de expressão, entenderemos que qualquer lei que exista ou venha a existir em torno da atividade jornalística não pode tocar, jamais, no conteúdo das notícias e das ideias que se discutem no espaço público.
A instituição da imprensa, que é uma instituição não-estatal, apenas admite regulação legal quando o que se pretende disciplinar são as regras de mercado dos meios de comunicação. Nada além disso. Como princípio, o chamado arcabouço jurídico das sociedades democráticas só deve tocar no assunto imprensa quando o objetivo for assegurar e fortalecer ainda mais a sua liberdade.
É para tratar disso que estou aqui. Quero usar uma linguagem simples, direta. Ou a cultura democrática pode ser facilmente explicada e compreendida, ou não é assim tão democrática. Sejamos simples, então. De onde vem a imprensa? De onde vem o jornalismo?
Meu mestre Alberto Dines gosta de lembrar as raízes antigas da palavra “jornalista”. São raízes de pelo menos dois mil anos. Na introdução de seu livro clássico, O papel do jornal, reeditado recentemente, ele comenta:
“O primeiro registro a respeito de uma profissão semelhante ao jornalismo foi consignado há cerca de dois mil anos no Senado romano e designava como diurnalii (diaristas, jornaleiros) os redatores das Actae Diurnae – o primeiro veículo noticioso regular de que se tem notícia”. [Introdução de O papel do jornal, de Alberto Dines, 191 pp., 9ª edição revista, atualizada e ampliada, Summus Editorial, São Paulo, 2009. Nesse ponto, Dines cita Jorge Pedro Souza, autor de “Uma Breve Historia do Jornalismo no Ocidente”, que se encontra em Jornalismo: Historia, Teoria e Metodologia (pp 34-44, Edições Universidade Fernando Pessoa, Porto, 2008).]
No nosso idioma, o nome da nossa profissão vem provavelmente daí mesmo. O mesmo notamos em francês, italiano, que têm origens latinas, e também em outras línguas. No inglês e no alemão, a palavra é a mesma: journalist. Até no russo se diz jurnalist (?????????). O periodista, do castelhano, parece um termo bem distinto, mas ele contém a mesma ideia: designa o profissional que se encarrega da atualização periódica das notícias. Tanto assim que, também em português, falamos de “periódicos” ao nos referirmos a um veículo mensal, diário, semanal, quinzenal etc. Dizemos que as publicações jornalísticas são aquelas que têm uma periodicidade definida. Jornalistas, enfim, cuidam de nos contar as novidades cotidianas, com periodicidade, atualizando as notícias em ciclos regulares de tempo.
Fonte do poder
Mas, além da etimologia apressada, o que é que define o jornalismo? O que é a imprensa?
Para chegar a uma definição aproximada, comecemos pelo que não é jornalismo nem imprensa. Um mero relato factual não é necessariamente um relato jornalístico. Um documento oficial também não é jornalismo. Se formos minimamente rigorosos, veremos que as atas do Senado romano não eram jornalismo, embora fossem peças informativas, periódicas e apresentassem um relato mais ou menos factual. Não eram jornalismo porque eram manifestações oficiais de uma instituição do poder político. Elas eram discurso oficial – e discurso oficial, nós veremos logo mais, é o oposto de jornalismo.
As atas do Senado romano de dois mil anos atrás decorriam muito mais da necessidade de divulgação dos atos do Senado e muito menos do direito do povo de saber dos assuntos oficiais, uma vez que, em Roma, fiscalizar o poder não era um direito do cidadão. Desse modo, embora fossem, ao que consta, mais ou menos diárias, não poderiam ser vistas por nós, hoje, como peças jornalísticas.
Muitas outras narrativas, que têm cara de discursos informativos, jornalísticos, também não são jornalismo. Relatos da História da humanidade não são necessariamente jornalísticos. Há quem diga que o historiador grego Homero (484 a.C.-420), que viveu bem antes dos diurnalii, além de ter sido o pai da História, foi também o precursor do jornalismo. Um grande jornalista polonês, Ryszard Kapuscinski (1932-2007), em Minhas viagens com Heródoto (publicado recentemente no Brasil pela Companhia das Letras), defende esse idéia. Ela narra, com sua prosa exemplar, como Heródoto foi sua maior inspiração profissional em suas reportagens pelo mundo. É um ponto de vista pertinente, respeitável. Heródoto foi magistral em sua capacidade de apuração, de memorização e, depois, de redação. Compôs textos repletos de novidades fascinantes, capazes de envolver, de maravilhar o leitor, até hoje. Mas ele não fez jornalismo. E isso não apenas porque seus textos não eram periódicos – isso é um detalhe menor, não é essencial. Ele não fez jornalismo porque não escreveu para os cidadãos que fiscalizavam o poder. Esse é o ponto central.
Claro que, no que hoje chamamos de jornalismo, há sempre um pouco dos diurnalii romanos, com a informação cotidiana sobre o poder. Há sempre, também, um pouco de Heródoto, e de sua exuberante vocação para contar histórias verídicas, factuais. Não só isso. Pode haver até mesmo um pouco do evangelista João, que muitos apontam como um “repórter” a documentar os passos de Jesus Cristo. Há um pouco de São João no jornalista? Pode haver, mas é bom lembrar que o Evangelho de São João não é peça jornalística, mas uma peça religiosa. Seu objetivo, antes de informar, é converter o leitor. Mesmo que existam hoje textos jornalísticos que pareçam artifícios de proselitismo fundamentalista, não se pode dizer que São João fosse meramente um repórter tendencioso. Ele era outra coisa: um apóstolo a serviço de seu Deus.
O jornalismo não existe desde sempre. Ele não nasceu com a linguagem, como supõem alguns, embora o gosto pelas boas histórias tenha nascido mais ou menos aí, quando um humano balbuciou suas primeiras expressões. O jornalismo também não foi instaurado pelo Império Romano. Não nasceu na Bíblia ou na Grécia Antiga. A narrativa jornalística é socialmente possível apenas a partir de uma passagem histórica: a invenção da democracia.
Trata-se de um corte no tempo. A invenção da democracia e da república, na era moderna, estabelece uma linha divisória. Só a partir daí que ganha sentido a convicção coletiva de que todo o poder emana do povo e em seu nome é exercido. O que surge nesse momento é o direito do cidadão de ser informado sobre os assuntos de interesse público. Desde então, as informações sobre o poder devem ser publicadas porque correspondem ao direito dos governados – não porque realizem os interesses de divulgação dos governantes.
Nesse momento histórico, o da invenção da democracia moderna, o cidadão conquista esse direito – de saber dos pormenores da gestão do Estado. A razão é muito simples: cabe a ele, cidadão, delegar o poder. Como o cidadão é a fonte do poder, o direito à informação precisa existir. Se não houver o direito à informação, a democracia não funcionará bem, pois a qualidade da decisão do cidadão no momento em que ele for delegar o poder será prejudicada.
Regulação democrática
Democracia forte é democracia em que o cidadão é bem informado, é culto, é crítico. É nessa perspectiva, e só nela, que podemos enxergar com clareza as razões pelas quais a imprensa nasceu como instituição social independente do Estado, o que faz dela uma instituição muito especial. Ela só pode exercer seu papel se estiver fora do Estado. Ela nasce e cresce enraizada na sociedade civil. Cabe à instituição da imprensa abrigar o livre exercício da liberdade de expressão, a mediação do debate público, o livre trânsito das ideias – em atendimento ao direito à informação.
A imprensa é o espaço social vivo dentro do qual a liberdade de expressão e o direito à informação respiram e são exercidos a salvo dos constrangimentos vindos do poder. Em poucas palavras: só há sentido em se falar de jornalismo e de imprensa numa sociedade democrática e republicana, ou numa sociedade que caminha claramente para a democracia e para a vigência dos princípios republicanos (que podem muito bem conviver com monarquias parlamentaristas).
O jornalismo não é, então, um gênero literário, não é um estilo, um padrão específico de narrativa. Ele pode ser tudo isso, mas, antes, e necessariamente, é um discurso historicamente existente a partir da democracia moderna. O que define o jornalismo não são atributos formais, estéticos ou narrativos de notícias escritas. Não é a existência de um título de matéria que transforma um amontoado de palavras em jornalismo. Não é uma foto com legenda. Não é a aparência sóbria do repórter falando na TV, atrás de um microfone. Para definir o jornalismo devemos começar, antes de tudo, não por seus atributos formais, mas por aquele a quem ele se destina. Notem bem: o que define o jornalismo não são seus atributos formais ou estéticos, mas aquele a quem ele se dirige.
O jornalismo é o relato factual, independente do poder, destinado a atender o direito à informação, direito do qual todo cidadão é titular.
Voltando então à velha imagem dos diurnalii: eles não eram jornalistas precisamente porque não estavam a serviço do direito à informação. E não estavam a serviço do direito à informação porque – é evidente – o direito à informação não existia. Na República Romana, o poder de verdade não emanava do povo, o que nos leva à obviedade de que, na República de Roma, não poderia haver jornalismo. Não havia lugar histórico para a prática do jornalismo.
O mesmo raciocínio vale para que entendamos, com simplicidade e clareza, o que é a imprensa. Como eu já disse, ela é a instituição social que abriga e fomenta essa função: o atendimento ao direito à informação, com base na liberdade de expressão. É também a partir disso que podemos entender por que é que ela se tornou encarregada de fiscalizar o poder – pelo lado de fora do poder. Para a imprensa, a fiscalização do poder é quase que uma consequência natural, automática, da excelência jornalística. A informação de qualidade, qualquer que seja o assunto, requer do repórter que ele se distancie do poder e reserve olhos críticos para o poder. Só assim ele produzirá informação de qualidade. Ao mesmo tempo, com os mesmos atos com que realiza seu trabalho, estará naturalmente fiscalizando o poder.
Então, quando vocês aqui, estudantes de Direito e de Jornalismo, ouvirem que o papel da imprensa é fiscalizar o poder, saibam que isso é estritamente verdadeiro e estritamente necessário. A imprensa tem, sim, o dever de fiscalizar o poder porque a ela cabe informar o cidadão sobre o que se passa de fato. Por isso, tende naturalmente a fugir das versões que as autoridades gostariam de veicular.
É por isso que dizem que sem imprensa independente não há democracia. Do mesmo modo, sem democracia não pode haver imprensa livre. Uma pede a outra, uma concorre para a outra. O cidadão livre precisa da imprensa por que é com base na existência da imprensa livre que ele se informa e debate ideias e, com isso, capacita-se a melhor delegar, fiscalizar e até mesmo exercer o poder.
Eis então o motivo pelo qual o Estado não pode, jamais, restringir de nenhum modo a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa. É verdade que o Estado tem o dever de regular os mercados, inclusive o mercado da mídia, mas, atenção, a regulação do mercado de mídia deve partir desse ponto, deve proteger os fundamentos aqui expostos. Quando na democracia se fala em regular a mídia, jamais, de boa fé, pode-se falar em regular o conteúdo jornalístico dos veículos de imprensa. Jamais.
A regulação democrática da mídia existe, ao contrário, para proteger esses conteúdos, para assegurar-lhes total liberdade. O que se pode regular e, às vezes, o que se deve regular, são as normas de mercado em que a imprensa funciona. Deve-se regular esse mercado exatamente para proteger a liberdade de todos, para impedir que monopólios, oligopólios ou mesmo o governo tenham chances de interferir indevidamente no mercado e assim sufocar idéias, teses ou correntes de opinião que lhes sejam incômodas.
Guardem bem esse princípio. Só faz sentido falar em regulação do setor de mídia, na democracia, se isso se referir à regulação democrática do mercado em benefício da liberdade. Não há sentido democrático em restringir conteúdos.
Três censuras
Para reforçar ainda mais esse ponto – que é tudo o que interessa nesta palestra –, eu gostaria de recuperar, com vocês, quatro passagens históricas. A primeira delas é o princípio formulado por John Milton de que a publicação de livros e jornais não depende e não pode depender de nenhuma aprovação de nenhuma autoridade. A segunda é o direito de livre expressão das ideias, tal como ele aparece na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, na França. A terceira é a Primeira Emenda à Constituição americana, que impede o Congresso dos EUA de legislar para estabelecer restrições à liberdade de imprensa. Finalmente, a quarta passagem histórica que devemos ter em mente é o nascimento da imprensa no Brasil, em 1808. No Brasil, por incrível que pareça, a censura foi criada antes da imprensa – e isso nos deixou marcas que até hoje nos dificultam a compreensão do que vem a ser a liberdade de imprensa.
Começando então por John Milton.
Areopagítica – pela liberdade de imprimir sem licença é o nome que o poeta e publicista inglês John Milton (1608-1674) deu ao seu discurso histórico. Nele, Milton defende o princípio da liberdade de impressão de livros sem a necessidade de qualquer autorização oficial. “Dêem a mim a liberdade de saber, de me manifestar e de debater livremente de acordo com a minha consciência, como a mais alta das liberdades”, proclama John Milton, no pronunciamento que ele publicou também em livro. Esse documento tem o valor, para nós, de uma pedra fundamental. Graças principalmente a ele, o princípio de que a publicação do pensamento humano deve ser radicalmente livre se tornou fundamento pétreo nos regimes democráticos que se seguiriam. Ninguém precisa pedir permissão para divulgar um discurso, uma criação literária, um pensamento, por qualquer meio que seja. Isso não significa que o autor não terá de responder pelos abusos ou crimes que vier a cometer em sua manifestação; significa apenas que a decisão de se manifestar cabe a ele, autor, ser humano livre. Ele é responsável. Ele não depende de licença para isso. Sem a vigência desse princípio, não o subestimem, nós não estaríamos aqui hoje.
Passemos ao segundo momento histórico que prometi relembrar. É a Revolução Francesa. Mais de 100 anos depois de Milton, em 1789, ela eclode em Paris, num evento que, este sim, reconfigurou as relações humanas em nosso mundo. Desse grande ano, fiquemos apenas com uma pequena citação. O artigo 11º da “Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão”, publicada em 26 de agosto de 1789: “A livre comunicação das ideias e das opiniões é um dos mais preciosos direitos do homem.”
Outra vez: por que esse direito se inscreve entre as garantias fundamentais de todo ser humano? Porque, além de amor à humanidade, os revolucionários franceses nutriam a certeza de que o regime que eles almejavam – a despeito do terror e da guilhotina que sobreviriam à queda da Bastilha, a despeito das atrocidades, das limitações, dos percalços e dos crimes imperdoáveis que cometeriam – só poderia vicejar se houvesse uma sociedade de homens bem informados, atentos, fiscalizadores e participantes. Desde então, esse princípio, o de que a comunicação deve ser livre, ficou inscrito na nossa cultura democrática.
A Primeira Emenda da Constituição americana nos dirá o mesmo. É a terceira passagem histórica que lembro a vocês. Publicada em 1791, a Primeira Emenda afirma: “O Congresso não deverá criar nenhuma lei (…) limitando a liberdade de expressão ou da imprensa.”
Um dos pais fundadores da democracia americana, Thomas Jefferson (1743-1826) tinha uma clareza cortante sobre o tema. Vocês sabem que ele, o terceiro presidente da República dos Estados Unidos (1801-1809), foi o principal autor da Declaração de Independência (1776) daquele país. Para ele, os Estados Unidos seriam o país “que combateria o imperialismo do Império Britânico”. Ele dizia: “A única segurança que existe está em uma imprensa livre”. Dizia também que "a força da opinião pública se torna irresistível quando se permite que ela se manifeste livremente”.
Não surpreende que, recorrentemente, os defensores da liberdade de imprensa repitam os ensinamentos de Thomas Jefferson. Ele tinha noção de que o regime que propunha dependia da imprensa livre – livre dos tentáculos do Estado. “Se a base dos nossos governos é a opinião das pessoas, o primeiríssimo objetivo deve ser salvaguardar esse direito”.
Numa de suas frases mais famosas, ele foi ainda mais radical: “Se fosse chamado a escolher entre um governo sem jornais ou jornais sem governo, não hesitaria um momento em escolher o último”.
Aqui, então, passo a destacar o quarto momento histórico que nos interessa de perto. Olhemos agora para a tradição brasileira. Ela desafina dessas que nos vêm da Inglaterra, dos Estados Unidos e da França. Não é segredo para mais ninguém que as monarquias católicas de Portugal e da Espanha, visceralmente comprometidas com a Santa Inquisição, mergulharam seus povos no obscurantismo ao longo de séculos. Até hoje, remanescem como fatores fortemente influentes na conformação dos totalitarismos do século 20. À exceção dos mártires, dos degredados e dos poetas, não nos ficam maiores lições de liberdade de Portugal e Espanha.
O Brasil, é claro, não poderia passar imune a essa tradição. Até o ano de 1808, nosso país Brasil era uma colônia. Nenhuma gráfica podia ser instalada aqui. Houve tentativas, mas nada foi adiante. Por aqui, o material impresso que circulava tinha de passar, antes, por um controle censório prévio.
Em 1808, D. João fugiu de Lisboa para o Rio de Janeiro, escapando de Napoleão, cujas tropas invadiriam Portugal. Ele trouxe para o Rio de Janeiro uma tipografia completa – que, na verdade, chegaria aqui um pouco depois dele. Além de livros, mandou imprimir, a partir de setembro daquele ano, um diário oficial, a Gazeta do Rio de Janeiro, sob controle estrito do poder. Por isso, a Gazeta de D. João não merece ser tomada por marco inaugural da nossa imprensa. Bem distante disso – política e geograficamente –, as primeiras linhas do jornalismo digno desse nome passaram a ser impressas, em português, na cidade de Londres, em junho de 1808. O Correio Braziliense, dirigido por um brasileiro, Hipólito José da Costa (1774-1823), surgiu e viveu ali, no exílio. Até 1822, saíram 175 edições do mensário, que só circulou no Brasil na malha da clandestinidade. Em Londres, ele era feito em português, sem censura. Mas, no Brasil, era proibido.
Esse não é um detalhe irrelevante. Como bem notou o professor de biblioteconomia Luís Milanesi, em seu pequeno livro O que é Biblioteca, lançado pela Brasiliense em 1983, “a imprensa no Brasil nasceu depois da censura”. Nesse mesmo livro, Milanesi recorda que, em Portugal, “desde 1536, qualquer impressão de livro passava por três censuras: o Santo Ofício e o Ordinário (da Igreja Católica) e o Desembargo do Paço (poder civil).” Em 1768, o Marquês de Pombal unificou as três na Real Mesa Censória [ver A longa viagem da biblioteca dos reis: do terremoto de Lisboa à independência do Brasil (de Lilia Moritz Schwarcz, com Paulo Cesar de Azevedo e Angela Marques da Costa), publicado em 2002 pela Companhia das Letras (p.180)]. Esta seria dissolvida em 1794, para a volta das três censuras anteriores. A despeito de mudanças de forma, a vigilância das leis da Coroa permaneceu inabalável, tanto que viajou junto com a corte – e sua tipografia – de Lisboa para o Rio de Janeiro.
Luz natural
Até 1822, foram editados 1.154 títulos, todos sob fiscalização do corpo censório. A Impressão Régia, quando instalada, ficou subordinada à Secretaria dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, com a atribuição clara de fazer propaganda de Estado. Tudo que contrariasse o governo, a religião e os bons costumes seria oficialmente vetado. “Era a censura colada à Real Tipografia” [A longa viagem da biblioteca dos reis, p. 250]. Em setembro de 1808, outra mudança de forma que não afetou o conteúdo: o Desembargo do Paço seria convertido em organismo censor do Brasil.
Desde essa época, temos convivido pacificamente com a presença da censura em nossa sociedade – às vezes mais, às vezes menos saliente. Quase não nos lembramos disso, mas, ainda no século 19, no reinado de Pedro II, reconhecidamente um liberal em matéria de imprensa, tínhamos o serviço de censura. O Conservatório Dramático Brasileiro cuidava normalmente da liberação ou não de peças de teatro. Um dado curioso é que, quando jovem, o escritor Machado de Assis trabalhou no Conservatório, encarregado de censurar peças, entre 1862 e 1864.
No século 20, sem contar a República Velha, olhando apenas para as décadas posteriores à revolução de 1930, nosso país passou por dois períodos longos de intensa intervenção do Estado na imprensa: a ditadura do Estado Novo, entre 1937 e 1945, e a ditadura militar, de 1964 a 1985. Nos dois, houve censores em redações, prisões, tortura, exílio e assassinato de jornalistas pelos órgãos de repressão política. Já no governo Sarney, instalado em 1985, quando o país festejava o fim da ditadura, sofremos a proibição de um filme francês, Je vous salue, Marie, de Jean-Luc Goddard, que não pôde ser exibido no circuito comercial. Aliás, mesmo agora, após a Constituição de 1988, que afirma ser “livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” (artigo 5º, inciso IX), e que vedou “toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística” (artigo 220, § 2º), a mentalidade censória ainda resiste.
O caso mais preocupante, hoje, é a manutenção dessa modalidade restrição da liberdade por força de decisões judiciais, a mordaça togada. Há dezenas de censuras impostas por juízes em nosso país já na primeira década do século 21. A mais conhecida é aquela que se abateu, em 2009, sobre o diário O Estado de S.Paulo, impedindo-o de publicar informações sobre a operação Boi Barrica, da Polícia Federal, que investigava negócios do empresário Fernando Sarney. Como a investigação corria em sigilo de justiça, o empresário entrou com uma ação pedindo que o jornal fosse proibido de tocar nesse assunto. Para dar sustentação à sua demanda, ele alegou que só assim a sua privacidade familiar seria respeitada. Inacreditavelmente, levou a melhor.
O raciocínio que induz algumas autoridades do Poder Judiciário à ilusão de que a censura judicial seria legítima está apoiado numa premissa falsa: a premissa de que o direito à intimidade pode se levantar contra outro direito, o direito à informação. E isso funciona assim porque, não raro, assuntos de interesse público vão se esconder, maliciosamente, no âmago da alegada intimidade de homens públicos ou de seus parentes. A bem da verdade, a democracia não combina com esse tipo de alegação.
O regime de liberdade de imprensa, e isso é fato, contém riscos – entre eles, o de que a publicação de uma reportagem ou de um artigo opinativo ofenda ou cause danos, às vezes bem graves, às pessoas atingidas. O regime da liberdade de imprensa, no entanto, prevê que, assim como é responsável pelo que decide publicar, o cidadão livre também deverá ser responsabilizado pelos danos que vier a causar – e terá de responder por eles.
De modo bem sistemático, podemos apontar aqui os três principais problemas do raciocínio antidemocrático.
Em lugar de admitir que a liberdade de imprensa é a face mais pública da liberdade de expressão; em lugar de aceitar que, na democracia, o cidadão tem o direito de dizer o que pensa sem precisar da licença da autoridade, o raciocínio antidemocrático introduz a restrição prévia e, com isso, contraria o princípio que nos foi legado por John Milton. Em lugar de o autor responder por eventuais danos causados a terceiros, ou mesmo por abuso da liberdade de expressão, o autor simplesmente é impedido de se manifestar, previamente, pela autoridade estatal. A liberdade de imprensa é então substituída pela autoridade judicial, que, como se fosse pajem do cidadão, passa a decidir, por antecipação, o que pode e o que não pode ser publicado.
Esse raciocínio supõe que a responsabilidade pela guarda do sigilo de Justiça pode ser jogada nos ombros do jornalista. Com isso, em vez de investigar as notícias, o jornalista passa a ser penalizado por divulgar a notícia que descobrir. Outra vez, temos aqui uma inversão completa dos valores democráticos. Como eu já disse, a investigação da Polícia Federal contra Fernando Sarney corria em sigilo de Justiça. Com base nisso, a decisão judicial estendeu esse sigilo às páginas dos jornais. O Estado de S.Paulo, por força de uma decisão judicial, teve de se submeter a um sigilo que, se devia mesmo ser protegido, deveria ser protegido pelas autoridades judiciais, não por jornalistas.
Por fim, esse raciocínio interpõe, entre um cidadão e outro cidadão, que deveriam ter o direito de se comunicar livremente, um Poder do Estado para vigiá-los e para filtrar os assuntos dos quais os cidadãos podem tratar. É esse filtro, exatamente ele, que caracteriza a censura.
Para alívio dos presentes, é preciso reconhecer que esse raciocínio antidemocrático, felizmente, não é predominante no Poder Judiciário brasileiro. É um ponto de vista minoritário. Contra ele, quem melhor se expressou foi o ministro do Supremo Tribunal Federal, Carlos Ayres Britto. Esse ponto merece que sejamos específicos.
No dia 6 de novembro de 2009, o Diário de Justiça, que é o diário oficial do Poder Judiciário, trouxe o acórdão redigido pelo ministro Carlos Ayres Britto, do Supremo Tribunal Federal (STF). Esse acórdão dá a redação final à decisão da corte que sepultou de vez a antiga Lei de Imprensa (Lei Federal nº 5.250, de 9 de fevereiro de 1967). Aqui, também, temos um texto relevante na história da liberdade de imprensa no Brasil. Sobre a ideia da censura prévia, o documento não deixou a mínima dúvida:
“O pensamento crítico é parte integrante da informação plena e fidedigna. O possível conteúdo socialmente útil da obra compensa eventuais excessos de estilo e da própria verve do autor. O exercício concreto da liberdade de imprensa assegura ao jornalista o direito de expender críticas a qualquer pessoa, ainda que em tom áspero ou contundente, especialmente contra as autoridades e os agentes do Estado. A crítica jornalística, pela sua relação de inerência com o interesse público, não é aprioristicamente suscetível de censura, mesmo que legislativa ou judicialmente intentada.”
Nessa passagem de Carlos Ayres Britto, a ideia democrática se sobressai com sua luz natural. A livre expressão e o direito à informação não admitem leis que os cerceiem. Eles devem ser apenas protegidos pela lei. Só.
Tarefas democráticas
Agora, podemos passar para a discussão final dessa minha fala, que é o tópico da regulação. Se em todas as democracias esse é um assunto delicado, no Brasil ele é ainda mais sensível, pois, como vimos, nossa relação com a liberdade não tem sido assim tão positiva. Podemos dizer que, muitas vezes, nós somos um país que tem relações mais íntimas com a censura do que com a imprensa.
Portanto, sejamos prudentes ao falar sobre regulação da mídia. Como adiantei no início, só há sentido na regulamentação ou na regulação quando o que estiver em causa for a proteção do direito à informação e da liberdade de expressão. Por isso é que existem agências reguladoras e órgãos análogos nas democracias para disciplinar o mercado dos meios de comunicação. Nesse campo, as leis e as autoridades existem para impedir o monopólio e o oligopólio, que desvirtuam o debate público, e também para impedir que a concentração de poder – inclusive aquele poder que, por meios promíscuos, associa interesses governamentais e interesses privados – distorça a liberdade de expressão e sacrifique o direito à informação.
Dentro do grande universo do mercado da mídia, quem mais precisa de marcos regulatórios é a radiodifusão, que, como vocês sabem, é a transmissão de sinais por ondas eletromagnéticas, usadas por emissoras de rádio e de televisão de sinal aberto. Como o espectro de ondas eletromagnéticas é limitado, essa área só pode ser operada com racionalidade se o Estado se encarregar de distribuir as frequências por meio de concessão pública. Sem a regulação estatal, o setor seria simplesmente inviável. Por isso, as democracias adotam os chamados marcos regulatórios. O único objetivo é padronizar e estabilizar seu funcionamento.
Bons exemplos de marcos regulatórios para essa área podem ser encontrados nos Estados Unidos, na França e na Inglaterra, para citar apenas os mesmos países de que já falei. Nos três casos, a regulação e a regulamentação existem para inibir tendências nocivas à democracia. Vou falar aqui de apenas três, que são as mais preocupantes, aos meus olhos.
A primeira delas é a formação de monopólios e oligopólios. A propósito, a própria Constituição brasileira já exige isso (art. 220, parágrafo 5). O problema dos monopólios (e também dos oligopólios) é que, controlando sozinhos o mercado numa determinada região do país, eles podem inibir a diversidade cultural, a diversidade das opiniões políticas e, além disso, a concorrência comercial saudável. Para a plena vigência da liberdade de expressão e do direito à informação, o Estado deve, na regulação do mercado (não dos conteúdos), inibir a formação de oligopólios e de monopólios.
A segunda tendência nociva é uma prática muito comum no Brasil: o controle direto ou indireto de emissoras de rádio e televisão por parlamentares. Os dados aí são cada vez mais escandalosos. Cresce, a cada nova legislatura, o número de parlamentares com participação em emissoras, como vêm demonstrando as reportagens de Elvira Lobato, na Folha de S.Paulo, e os artigos do professor Venício Lima no Observatório da Imprensa. Embora a Constituição, em seu artigo 54, procure impedir que senadores e deputados mantenham contratos com empresas concessionárias de serviço público (e as emissoras são exatamente isso, concessionárias de serviço público), o poder público se cala diante disso.
A terceira tendência nociva é a entrada de igrejas na propriedade ou na administração das emissoras. Isso contraria os fundamentos do Estado laico e da vida democrática – mas é o que vem se dando, com freqüência cada vez maior. Citemos outra vez a Constituição, agora em seu artigo 19: “É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público”.
O artigo 19 quer dizer que o Estado não pode, em nenhum aspecto e sob nenhuma justificativa, deixar-se conduzir por interesses religiosos – exatamente para que todas as modalidades de fé recebam tratamento igual e tenham igualmente assegurados os seus direitos. Ora, a radiodifusão, definida pela Constituição como serviço público, também não pode ser dirigida por igrejas ou pelos critérios definidos por organizações religiosas. Isso não significa dizer que celebrações religiosas não possam aparecer na TV ou no rádio. Elas podem aparecer, pois constituem fatos da vida nacional, como todos os outros. O problema está em orientar toda a programação de emissoras, que deveriam ser serviços públicos, para a construção de igrejas particulares, pondo as outras em desvantagem. Isso também deve ser evitado por uma regulação democrática dos meios de comunicação.
Além de inibir os fatores de ameaça à livre comunicação das ideias, das notícias e das opiniões, um marco regulatório democrático deveria se ocupar de estimular:
As diversas formas de comunicação pública, em universidades, comunidades e emissoras sem finalidades comerciais. Isso requer um modelo que impeça a propaganda comercial em emissoras públicas, formas de financiamento democráticas e prestação de serviços de qualidade, sem interferência do poder político. Hoje, temos algumas emissoras públicas no Brasil, mas todas padecem pela forte ingerência governamental, que tende a fazer delas máquinas de propaganda do poder.
O acesso cada vez maior de todos os cidadãos à informação jornalística. Em grande medida, isso depende da construção de redes de banda larga para acesso à internet, e políticas públicas que assegurem uma redução sustentável no preço de equipamentos básicos de informática.
Por fim, é bom registrar que, também na esfera das novas tecnologias digitais – para além do setor de radiodifusão, portanto – é saudável que se encontrem fórmulas para inibir a formação de monopólios que venham a viciar o livre funcionamento do mercado. A concentração de propriedade nas áreas de produção e veiculação eletrônica de conteúdos informativos ou culturais deve sempre merecer os cuidados da regulação. Assim, como as democracias mais avançadas vêm demonstrando, a sociedade respira com mais liberdade e o debate se expande.
Em nenhum sentido, repito, precisamos de alguma regulação que venha para restringir os conteúdos. A regulação só é útil quando é necessária para assegurar a todos o direito à informação e à liberdade de expressão. Vejam que, para publicar um jornal impresso, ninguém precisa de concessão pública. Por isso, não há necessidade de regulação direta para essa modalidade de comunicação social. A regulação só é necessária quando sem ela não se pode proteger a liberdade de expressão e o direito à informação.
No mais, digo apenas que, se me demorei nesse tema, e se fui repetitivo em tantas passagens, é porque não quis correr o risco de que vocês perdessem as noções que expus. Preferi pecar pelo excesso. E, se quis assim, foi porque tenho a certeza de que, em boa medida, as tarefas democráticas que listei aqui acabarão caindo nas mãos de vocês. Como a minha geração não deu conta de promover os avanços que tanto nos faltam, ao menos até aqui, vocês serão chamados a resolver mais essa pendência da democracia brasileira. Muito obrigado.