Numa época de eus, euzinhos e euzões, a acionar suas edípicas bombas narcísicas, financeiras, luxuosas, televisivas, publicitárias, sem lastro no reino das necessidades coletivas, reino da verdadeira liberdade; numa época assim, de eucentrismos, o elogio a personalidades políticas, televisivas, artísticas não faz falta alguma; é mesmo dispensável.
A nossa época (e todas as outras precedentes) é a de João-e-Maria-Ninguém; época de qualquer um, de anônimos, abandonados, perdidos; época antes de tudo daqueles e daquelas que veem cair sobre suas cabeças, neste momento, bombas com fósforo branco ou com plutônio empobrecido, no Iraque, Afeganistão no Iêmen, na Palestina, na Somália e em muitos outros lugares que desconhecemos.
É por isso que é possível dizer que os mais contemporâneos povos do mundo; os mais civilizados, democráticos, atuais, modernos e pós-modernos são esses que se tornaram vítimas da fúria bárbara e genocida de dispendiosos eu multinacionais, eu Estados Unidos, eu forças bélicas, eu monopólio e oligopólios midiáticos, eu Comissão Europeia, eu Clinton – marido e esposa –, eu Obama: eus que são os mais anacrônicos, os mais antidemocráticos, os mais arrogantes e ditadores da nossa atual cibernética civilização porque são os eus que manipulam, mentem, dividem, agridem, humilham, assassinam e traficam drogas de mercadorias inúteis e bélicas pelo mundo afora e, em nome de nos obrigar a comprar esses estupefacientes da democracia dos ricos, ameaçam como nunca extinguir a vida de todo o planeta.
Os traficantes como ideais de ego
E ameaçam não através de mera retórica ou gestos enraivecidos, de vez que ameaçam na prática, exercitando, com apoio midiático, a extinção da vida na Terra; ameaçam, assim, matando milhões de humanos e não humanos, sem que nenhum tribunal do mundo tenha sequer sugerido vestígios de mínima criminalidade.
E não é mesmo surpreendente, revelador e surrealista que, num contexto assim, as cadeias estejam cheias de pobres, exatamente aqueles que não podem comprar as drogas mercadológicas e luxuosas que intoxicam todo o planeta? E também não é mesmo incrível e inimaginável que esses fabulosos eus cínicos, criminosos, mentirosos e ditadores plutocratas sejam editados e apresentados, por nossas TVs privadas, como os mais magnânimos, alegres, civilizados e democráticos viventes?
Numa época em que as luxuosas e tecnológicas mercadorias de longe são mais importantes que as pessoas (inclusive mais importantes que os eus que mencionei antes, porque estes eus, na verdade estão a serviço delas, das mercadorias, como verdadeiros traficantes); numa época assim não é mesmo de chorar de rir ou rir de chorar que tenhamos um tipo, na TV privada brasileira, como o Datena, que berra diante das câmeras exigindo mais punição, mais cadeias, mais rigor das leis para pobres coitados – ainda que traficantes, ainda que assassinos – enquanto que os verdadeiros traficantes estão à solta e são pintados por nossas privadas TVs como ideais de ego?
Quer dizer que, em nossa maluca época, os grandes traficantes, os que fabricam e distribuem as drogas de mercadorias, que cada vez mais transformam o planeta num lixão, envenenando terras cultiváveis, mares, rios; quer dizer que, insisto, esses grandes traficantes são divinizados e transformados em ideias de ego por nossas privadas TVs e estas mesmas se assustem quando alguns poucos dos muitos abandonados pobres (que não tiveram a chance de estudar, de morar, de viver com dignidade) são apresentados como a causa única da violência e da insegurança geral em que vivemos, só porque têm os grandes traficantes como ideais de ego e os imitam, como crianças que imitam os seus adorados pais?
Fabulosas e endeusadas mercadorias
Mas não é a mesma TV privada que adora a droga do dinheiro da publicidade dos grandes traficantes? Então quer dizer que, como fiéis telespectadores, os nossos pobres traficantes passam a imitar os grandes traficantes, exatamente porque, dentre outras possibilidades, sempre viram muita TV?
Então quer dizer que nossa privada TV estimula a violência? Por que, então, como respeitável juiz de exceção do tribunal televisivo, Datena não diz que tem que ter leis mais rigorosas para as nossas privadas TVs? Por que ele não pede cadeia para o dono da TV Bandeirante, se for realmente verdade que, como privada TV, a Bandeirante realize diariamente adoração dos grandes traficantes de mercadoria do mundo? Ou traficante é só aquele ilegal, que trafica drogas proibidas? Nesse caso, quer dizer que as drogas das mercadorias – fabricadas por legais mercadores – é menos droga que as drogas ilegais?
E esses traficantes, para fabricarem suas mercadorias-carro, suas mercadorias-petróleo, suas mercadorias-dinheiro, suas mercadorias-fármacos, suas mercadorias-televisão, suas mercadorias-religião, não submetem a vida na Terra a um stress sem tamanho?
E depois de um processo movido contra o planeta, um judicial, de exceção, processo global de produção de mercadoria, esses grandes traficantes de drogas de mercadorias não dividem a Terra em duas regiões: a região que oferece matérias-primas e aquela outra que utiliza e confecciona matérias-primas, transformando-as em fabulosas endeusadas mercadorias?
Apresentador erra o foco
E essa divisão entre os fornecedores de matérias-primas e os magos que as transformam em coloridos narcóticos de tecnologia não tem relação alguma com a destruição do meio ambiente, a depredação de terras indígenas, as guerras genocidas entre etnias, as misérias demais de um lado do planeta e a riqueza concentrada de outro?
E não é verdade que pessoas que ganham fortunas astronômicas são igualmente aquelas que podem comprar as drogas das mercadorias, as drogas mais desejadas pelo conjunto drogado de nossa narcótica civilização mercadológica? E não é verdade que essas pessoas, chamadas de elites econômicas, não são as que reforçam a divisão entre pobres fornecedores de matérias-primas, inclusive a matéria-prima corporal, como tráfico de mulheres, de órgãos, de crianças, prostituição; e seus ricos compradores?
E isso tudo não é absolutamente injusto e violento e está intimamente relacionado com a violência urbana, cometida por pobres fornecedores de matérias-primas, como maconha, craque, cocaína, num mundo tão surrealista, como o nosso, que proíbe essas matérias-primas, transformando em criminosos aqueles que as produzem e as traficam e ao mesmo tempo libera, legalmente, na outra ponta, o cultivo e a fabricação de outras drogas mercadológicas ainda mais nefastas para todo o sistema-mundo?
E não é verdade que o Datena erra o foco ao berrar diante das câmeras, exigindo severas punições aos violentos pobres fornecedores de matérias-primas, num mundo, como o capitalismo, que o tempo todo solicita e toma dos pobres do mundo essas matérias-primas porque não podem viver sem elas, bastando considerar o caso dos Estados Unidos, país que mais as consome, quando não é o país que mais as produz; quando não é igualmente o que mais se beneficia delas porque as transforma em papel-moeda, em dólar, que inclusive depois é utilizado para pagar a fabricação de armas para massacrar povos e roubar suas matérias-primas?
A máquina de dissecação dos ricos
E não é mesmo risível, difícil de acreditar, que todo sujeito que tenha a petulância – além de consciência não narcótica – de dizer não a esses farsantes drogados do Eu sou o mais civilizado ou Eu sou o mais democrático ou Eu sou o mais bem-sucedido sejam imediatamente acusados de serem ditadores, antidemocráticos, traficantes,terroristas; aqueles que não respeitam a liberdade de expressão ( que é a liberdade de circulação da droga da mercadoria entre fornecedores de matérias-primas e seus beneficiários ricos), por nossas privadas TVs privadas?
E se esse mesmo sujeito não for mais um sujeito isolado e tiver consigo uma multidão de outros sujeitos? E se essa multidão de outros sujeitos for o povo sem território, de um território sem povo, de uma nação cheia de petróleo, que é o combustível, a matéria- prima, que alimenta os motores desse modelo narcotizado em que vivemos?
E se, na América Latina, esse território sem povo e esse povo sem território for a Venezuela? E não é lá, na Venezuela, que esse povo sem território de repente foi percebendo, votando n vezes no Hugo Chávez, que o território de seu povo não é o território do sistema de êxtase das privadas TVs, que sempre acusam de horda de bandidos o povo, quando este consegue finalmente identificar o território de sua saída da pobreza, como fazem, de resto, as privadas TVs no Brasil, com o MST, que nada mais o é que um povo em busca do território de sua justiça, diferente, nesse caso, do povo Palestino, cujo território foi tomado por um povo, que também buscava seu território, como o povo Hebreu, e que o encontrou se apropriando do território de outro povo?
Esse é o erro crasso do povo hebreu, especialmente de sua despótica elite drogada: um povo não pode tomar um território de outro, porque um povo é todo o povo; é todo, vale dizer, o território povo do planeta, que é o povo por excelência, o planeta povo. Por isso um povo é vida, porque busca o território de sua vida, sem lastro em cosmogonias, mitos, deuses, sangues azuis.
Pois muito bem, porque Hugo Chávez se tornou o corpo civil-democrático do território de seu povo, sem cessar nossas privadas TVs o acusam de ser terrorista e alimentam o narcotizado consenso de que a Venezuela tem que ser salva de seu povo, que não entende que o povo tem que ser mesmo sem território, sem vida, para que o território do povo esteja à disposição da máquina de dissecação dos ricos do planeta.
O candidato da extrema-direita
E se esse consenso, que as privadas TVs ajudam diariamente a sedimentar, de que todo povo que busca seu território é um povo que precisa ser invadido porque lá, nesses lugares em que o povo sem território parece encontrar, ainda que contraditoriamente, o democrático caminho de seu povo; enfim e em começo, e se esse consenso for apenas uma estratégia bélica para justificar a invasão desses povos, e a destruição de seu povo, como aconteceu no Iraque, que foi invadido depois que as privadas TVs de todo o mundo sedimentaram o consenso de que lá, no Iraque, existiam armas de destruição em massa, razão pela qual a massa drogada das armas de destruição dos ricos do planeta é que acabou destruindo o Iraque, jogando bombas em sua infra-estrutura, sua cultura milenar e matando quase todo o seu povo, agora realmente sem território, sem o Iraque?
Nesse caso, é verdade que as privadas TVs de todo o mundo são uma importante etapa bélica de desinformação e narcotização dos povos, a fim de, em seguida, preparar o caminho da invasão dos territórios dos povos que buscam democraticamente o seu caminho de justiça?
E se essa última pergunta for verdadeira, é verdade que, dizendo que Hugo Chávez é um ditador, as nossas privadas TVs não estarão preparando o caminho para uma guerra na América Latina?
Será que uma guerra na América Latina não teria como objetivo, além de massacrar o povo venezuelano, também fabricar o terrorismo televisivo de que, para que a guerra não chegue ao Brasil, é preciso que o povo brasileiro vote no Serra? Será que é por isso que o Serra e seu vice andam dizendo que o PT é amigo das Farcs? Será que é só através de uma guerra, inclusive televisiva, que Serra, como candidato da extrema-direita, pode ganhar a eleição no Brasil?
A cabeça de Chávez numa bandeja de prata?
E por que uma guerra das TVs privadas do mundo todo, inclusive no Brasil, há muito tempo já está ocorrendo na Venezuela, contra o povo venezuelano? Não será porque Hugo Chávez foi o São João Batista de toda busca pela justiça dos povos atuais do mundo, numa época em que o consenso das privadas TVs já não permitia que falássemos em socialismo, comunismo, pós-capitalismo, luta de classes, imperialismo, expressões consideradas até então, antes de Chávez, anacrônicas?
Nesse caso Hugo Chávez não seria também o São João Batista do Lula da Silva no Brasil? E como reagiriam nossas privadas TVs se Lula da Silva aceitasse, humildemente, ser batizado por Chávez no caudaloso e petrolífero Rio Orinoco, na Venezuela, repetindo, como um ritual festivo de futuras justiças para os povos de todo o mundo, o ritual que teria ocorrido no Rio Jordão, onde São João Batista teria batizado Cristo?
Chávez é, então, tal como São João Batista, o precursor da possibilidade de salvação dos povos do mundo?
E se Herodes for os ditadores ricos dos tempos atuais, quer dizer que as nossas privadas TVs equivalem ou fazem o papel de Herodíades; de esposa de Herodes, aquela maliciosa mulher que pediu a cabeça de São João Batista, como prêmio?
Então as privadas TVs estão mesmo a serviço do Império Romano?
Quem quer a cabeça de Hugo Chávez numa bandeja de prata, quer também a cabeça do povo?
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Professor da Universidade Federal do Espírito Santo, poeta, escritor e ensaísta