Filipe Ribeiro de Meneses é um historiador português, radicado na Irlanda, que passou os últimos sete anos debruçado sobre tudo o que poderia encontrar sobre António de Oliveira Salazar. O esforço partiu de uma provocação: saber como funcionava a mente do ditador português que esteve no poder de 1932 até 1968. A resposta veio no formato de uma biografia de mais de 800 páginas contando a história de um personagem que não conseguia se ver longe das decisões políticas. Focando na vida pública do biografado, Salazar – Biografia Definitiva (ed. Leya) lança um novo olhar sobre o estadista que até então não tinha um registro fiel sobre sua trajetória, posto que muito do que foi escrito até então tinha caráter panfletário. Por email, o autor conversou com O Povo e revelou detalhe sobre sua pesquisa. Acompanhe.
“Não estabeleceu uma dinastia, manteve sempre a modéstia”
Você começa o livro comentando sobre as dificuldades de se realizar uma pesquisa na atualidade. Então, o que levou a dedicar sete anos de vida a Salazar?
Felipe Ribeiro de Meneses – O interesse pela figura histórica mais marcante do século 20 em Portugal – pelo homem que dominou a vida política do país durante quatro décadas, impondo uma visão do seu desenvolvimento e da sua relação com o resto do mundo. Não estava esse interesse saciado pelas biografias e estudos existentes – e, para mais, tinha a consciência de que muitos outros portugueses – para não falar no resto do mundo – pensava da mesma forma em relação à historiografia do período. Faltava uma biografia escrita com rigor acadêmico, mas relativamente fácil de ler, que tentasse explicar a vida e a obra de Salazar, não apenas para o criticar ou elogiar.
Respondendo à pergunta que lhe foi feita antes da conclusão do livro, como funcionava a mente de Salazar?
F.R.M. – É difícil de explicar; ele era um misto de arrogância e embaraço, de força e de fraqueza. Confiava em poucas pessoas, era muito cauteloso, não era expansivo nem bon viveur. Tendo chegado à conclusão que, para Portugal, era essencial que ele se mantivesse no poder, fez tudo o que era necessário para derrotar os seus rivais: mas não morreu rico, não estabeleceu uma dinastia, manteve sempre uma grande modéstia em seu redor. Foi um caso único.
“Sob o ditador, Estado e nação tinham-se reconciliado”
É sabido que Salazar não era bom orador, não investia em carisma e, como todo ditador, carregava um longo fardo de violências e assassinatos cometidos durante seu regime. Como ele ainda conseguiu, depois de tantos anos, ficar em primeiro lugar na seleção do “grande português”, realizada pela RTP? O que nele ainda fascina os portugueses?
F.R.M. – A vitória nesse programa televisivo tem de ser posta em contexto. Foi um programa visto por poucas pessoas e menos ainda votaram. Foi muito maior a polêmica que causou do que o sucesso a nível de audiência. E a RTP, para tentar aumentar o interesse, foi anunciando como estava a decorrer a contagem dos votos, enquanto era ainda possível votar; o resultado foi uma briga entre Salazar e Álvaro Cunhal, o líder histórico do Partido Comunista Português. Venceu Salazar. E estou convencido de que muita gente votou em Salazar como forma de protesto contra o governo.
Posto esse ponto de parte, resta, sem dúvida, um fascínio, tendo em conta as contradições que apontei na resposta anterior. O sucesso do meu livro em Portugal confirma a existência desse interesse, desse desejo de entender Salazar sem ter recurso a insultos ou a elogios excessivos.
Como agia a máquina de publicidade do governo Salazar? Quais eram as prioridades?
F.R.M. – A propaganda do Estado Novo foi confiada a uma agência própria do Secretariado de Propaganda Nacional (mais tarde Serviço Nacional de Informação), que não só velava pelo que dizia a imprensa (nacional e estrangeira), como também fornecia matéria escrita para essa imprensa. Mais tarde, claro, o regime beneficiou da existência da rádio e da televisão (e, até certo ponto, o cinema) para fazer passar a sua mensagem. A primeira prioridade era demonstrar a legitimidade de Salazar – uma legitimidade que, não sendo baseada no sufrágio popular, tinha de assentar nas qualidades “excepcionais” do homem. Depois, demonstrar que sem o Estado Novo e as instituições criadas por Salazar, Portugal, incapaz de se governar de forma democrática, viraria comunista num curto espaço de tempo. Por fim, tentar demonstrar que, sob a batuta de Salazar, Estado e nação tinham-se por fim reconciliado: que as instituições e práticas governamentais eram genuinamente portuguesas, não estando já contaminadas por ideias estrangeiras. Assim, Portugal era mais uma vez o que sempre tinha sido, segundo esta visão: um Estado unitário, disciplinado, forte; os portugueses, conservadores, majoritariamente católicos, nacionalistas, mas abertos ao resto do mundo, desejosos de contribuir para o alastrar da civilização ocidental, sua missão histórica.
“Um arquivo que é um sem fim de documentação”
O senhor comentou recentemente numa entrevista que têm sido publicados muitos estudos sobre o Estado Novo em Portugal, mas nenhum estudo mais aprofundado especificamente sobre Salazar. Qual a dificuldade que existe em se abordar esse personagem? Sua figura ainda dá medo ao povo português?
F.R.M. – Não dá medo, como não dava enquanto vivo. Outros se encarregavam – e, infelizmente, bem – disso. As dificuldades em escrever sobre Salazar são muitas. Em primeiro lugar, governou Portugal durante quarenta anos – e fê-lo ativamente, deixando atrás de si um enorme caudal de matéria escrita. Salazar trabalhava muito: nisso era muito diferente de outros ditadores, como Franco e Hitler. Por isso, é necessário seguir essa labor governamental durante quarenta anos para não falar na vida antes de entrar no governo. Para empreender tal tarefa, o historiador, mesmo que contando com a ajuda do trabalho de outros – da historiografia do período –, precisa de tempo: e o tempo é um bem cada vez mais precioso. Nem sempre os professores universitários têm tempo suficiente para um trabalho desta natureza. Por outro lado, em Portugal, muitos professores catedráticos não acreditam no valor historiográfico da biografia – nem da história política. E isso limita as escolhas de tema dos mais novos, esses, sim, receosos de ofender os mais categorizados. Houve recentemente uma vaga de biografias acadêmicas, mas ninguém ousou, até meu livro, dedicar-se a Salazar. Nesse sentido, o fato de eu viver e trabalhar no estrangeiro provavelmente ajudou.
Entre os documentos que o senhor consultou para a biografia estavam as correspondências entre o intelectual suíço Gonzague de Reynold e Salazar. Como o senhor teve acesso a esses documentos? O que estas cartas acrescentaram para a pesquisa?
F.R.M. – Esses documentos estão no Arquivo Oliveira Salazar, mas ainda não tinham sido usados. Esse arquivo é um labirinto: é um sem fim de documentação. Grande parte das cartas trocadas entre Salazar e Gonzague de Reynold não está na pasta que corresponde a este último na correspondência particular de Salazar. Está numas pastas chamadas “Correspondência Oficial Especial”. Por isso, quem estivesse interessado em Gonzague de Reynold não as teria encontrado. Quem queira trabalhar no Arquivo Oliveira Salazar necessitará de tempo para entender como ele está organizado.
“Uma família ersatz curiosíssima”
Com a imprensa sofrendo forte censura na época de Salazar, o que foi possível encontrar nos jornais e revistas que serviram como fonte?
F.R.M. – Graças à internet, consultar a imprensa estrangeira é, hoje em dia, muito fácil: são muitos os jornais que têm as suas edições anteriores à disposição do leitor, e ainda bem que assim é. Em certas alturas-chave do Estado Novo, a cobertura feita pela imprensa estrangeira foi de grande importância. Quanto aos jornais portugueses, é claro que o valor é menor: mas quando estudamos um ditador, precisamos entender como ele é apresentado ao seu povo; e nesse sentido, sobretudo até aos anos 60, é necessário consultar a imprensa.
Como era o Salazar fora do trabalho?
F.R.M. – A vida de Salazar mudou muito com o atentado bombista de que foi vítima em 1937, durante a guerra civil de Espanha. Fechou-se muito; passou a viver numa residência oficial, usada ainda hoje pelo primeiro-ministro, cercada por um muro alto, com um jardim onde podia passear em paz (sendo que até então, todas as noites dava grandes passeios a pé por Lisboa, na companhia de seus ajudantes mais próximos). Deixou de viajar pelo país de comboio, fazendo-o de automóvel (e uma única vez, em 1966, de avião). A sua vida era discreta, dividida entre Lisboa, a sua aldeia natal de Vimieiro, perto de Santa Comba Dão, e mais tarde o Forte de Santo António, perto do Estoril, onde passava parte do verão. Tinha um núcleo reduzido de amigos, que o acompanharam quase toda a vida, com quem jantava regularmente. Mais discreta ainda, e geralmente desconhecida dos portugueses da altura, era a sua vida amorosa. Nunca casou, mas ajudou a criar duas moças, familiares da sua governanta, dona Maria. Juntos, formavam uma família ersatz curiosíssima.
“O apoio do Brasil era muito importante”
Salazar teve uma forte educação religiosa. Para ele, não parecia contraditório ter essa educação e aceitar a prática repressora do seu governo?
F.R.M. – Não, porque via a repressão como necessária contra quem destruiria não só o país como também a religião católica em Portugal. Era um mal necessário que os “bons portugueses” não deviam temer.
Como era a relação de Salazar com outras figuras políticas importantes da época, como Francisco Franco, Hitler e Mussolini?
F.R.M. – Não havia grau de intimidade com nenhum. O único que conheceu pessoalmente foi Franco, com que se avistou regularmente ao longo das décadas em que ambos se mantiveram no poder – mas não se pode dizer que fossem amigos. Precisavam um do outro, mas nada mais. Durante alguns anos, Salazar teve uma fotografia autografada de Mussolini na secretária; admirava a forma como ele tinha resolvido a crise em que a Itália se encontrava após a I Guerra Mundial e vários pontos da doutrina fascista – mas não a queria copiar em Portugal. Quanto a Hitler, o distanciamento era ainda maior e aliado a uma enorme preocupação sobre a “Nova Ordem” que este anunciava para a Europa continental.
Quais eram os principais interesses de Salazar com o Brasil?
F.R.M. – Do Brasil, Salazar queria boa vontade, solidariedade e uma cooperação na política internacional e colonial – sobretudo durante a II Guerra Mundial e, mais tarde, uma vez iniciadas as guerras coloniais em África. Tendo adotado oficialmente a visão dos portugueses e de sua aptidão colonialista, de Gilberto Freyre, e estando a trabalhar – de novo, oficialmente – para construir novas sociedades multirraciais em África, era importante para Salazar que o Brasil, a mais importante dessas sociedades, e produto do colonialismo português, apoiasse Lisboa. Esse apoio era mais importante do que qualquer outra relação entre os dois países.
“Não houve um programa de compensação de vítimas do salazarismo”
Quais eram as semelhanças e diferenças entre o Estado Novo português e brasileiro, durante o governo de Getúlio Vargas?
F.R.M. – Confesso conhecer relativamente mal o Estado Novo brasileiro, mas parece-me que as diferenças se prendem, a certo nível, com a dimensão dos dois países e o grau de implantação dos dois regimes. Em Portugal, país pequeno, tradicionalmente conservador, com uma população homogênea, e onde a apatia para com a vida política era a norma, o Estado Novo pôde afirmar-se com mais força, sofrendo menos contestação. O fato de o único vizinho de Portugal, a Espanha, ser uma ditadura ainda mais dura do que a portuguesa contribuiu para fortalecer ainda mais essa implantação. No Brasil a situação era bem diferente, assim como o era a influência norte-americana.
O senhor afirma na introdução à edição brasileira ter íntima ligação com o Brasil. Qual é essa sua relação?
F.R.M. – Meu pai foi embaixador de Portugal no Brasil na década de noventa. Tem muito orgulho em ter visitado todos os estados do Brasil. Pude acompanhá-lo, durante as minhas férias (estava, na altura, a escrever a minha tese de doutoramento e iniciar a carreira de professor), em algumas dessas visitas. Nunca cheguei, infelizmente, a Fortaleza, mas meus pais adoraram essa cidade.
Como ficou a situação das famílias atingidas pela ditadura de Salazar? Foram indenizadas?
F.R.M. – Que eu saiba, não. Houve um ou outro caso de reintegração – mesmo que póstuma – na carreira, para fins de aposentadoria (por exemplo, o ex-diplomata Aristides Sousa Mendes), mas não um programa de identificação de vítimas do salazarismo e compensação pelos danos sofridos.
“Muitos portugueses ainda não entenderam o que significa ser cidadão”
É possível se contabilizar o que Salazar trouxe de bom e de ruim para a história de Portugal?
F.R.M. – É muito difícil de fazer, pois foram quarenta anos de história – e Portugal, em 1968, era muito diferente do que era em 1928: houve progresso, houve desenvolvimento, especialmente nas décadas de 50 e 60. Fala-se muito agora, em que Portugal (mais uma vez) sofre as consequências da má gestão das finanças públicas, da estabilidade destas mesmas finanças durante o Estado Novo. Para Salazar, orçamentos equilibrados eram a prioridade das prioridades, o fim perante o qual todos os interesses se tinham de curvar. O escudo era uma moeda forte, o Estado pagava o que devia, o país era respeitado pelos mercados internacionais. Mas, claro, isso não chega; o preço que se pagou foi demasiado alto. O maior erro de Salazar – aquele que acarretou as consequências mais negativas para Portugal – foi a insistência em combater o processo de descolonização. Não foi Salazar sozinho que conduziu Portugal à guerra em África, mas muito poderia ter feito para a evitar. E a herança, quer em Portugal, quer nas ex-colônias, foi muito pesada.
Quais os reflexos do salazarismo que ainda podem ser sentidos hoje em Portugal?
F.R.M. – Quero pensar que, quarenta e três anos depois da morte de Salazar, e 35 anos depois da Revolução do 25 de abril de 1974, esses reflexos já não são evidentes. Os problemas de Portugal, problemas que, neste momento, ensombram tanto do que há de bom no meu país, são a responsabilidade dos portugueses de hoje. Muitos ainda não entenderam o que significa ser cidadão, não interiorizaram que ser cidadão significa direitos e deveres para que uma sociedade funcione. E isto apesar do facto de a nossa primeira constituição ser de 1821.