Friday, 29 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

Sigilos que nos governam

Em conjuntura histórica de descrença em mandatos políticos, desgastados por escândalos e apurações malfeitas, a legitimidade de muitos representantes do povo está aquém do mínimo necessário para propor, defender e assegurar razões de Estado na manutenção de documentos públicos como secretos. Mesmo que não existam, é difícil acreditar que uma dose de razões pessoais não busque abrigo nas do segredo de Estado.

Num país em que nem sempre as razões de Estado são do Estado, em que público e privado se mesclam impunemente, como temos visto nos mensalões da vida, o debate sobre o tema corre o risco de cair num ofensivo cinismo. Quando se vê que estão envolvidas na querela sobre documentos secretos algumas das figuras envolvidas há algum tempo na dos atos secretos do Senado e foram cúmplices do regime dos decretos secretos da ditadura, não se pode deixar de ter dúvidas sobre o modo como a questão está sendo conduzida. Os atos secretos do Senado acobertavam nomeações irregulares de parentes e amigos de parlamentares para cargos públicos. Eram secretos, disseram, porque por distração deixaram de ser publicados no Diário Oficial. Já não nos importamos com a enormidade da justificativa desrespeitosa. Essa simpatia por governação secreta dá o que pensar e temer.

Dizer que é preciso manter secretos os documentos relativos à incorporação ao Brasil do território do Acre, que antes pertencera à Bolívia, é supor que somos, além de ingênuos, ignorantes. Só essa declaração de um senador já causa mais danos às relações entre o Brasil e a Bolívia do que a abertura do segredo de Estado relativo ao que foi, de fato, uma transação comercial. O Brasil comprou o Acre à Bolívia, para resolver uma situação de fato, do mesmo modo que os Estados Unidos compraram o Alasca à Rússia.

Decisões e orientações

Dizer, ainda, que os documentos de determinado governo estão abertos à consulta pública numa fundação em São Luís do Maranhão tampouco diz algo que deva ser levado a sério. Esses documentos são basicamente cartas enviadas ao presidente da República pelos cidadãos. Porém, os documentos de Estado, que possam ser objeto de segredo, não estão lá.

Não só podem haver razões pessoais até discrepantes das razões de Estado no adiamento do acesso aos documentos protegidos pelo segredo, mas também razões de grupos e partidos que, tendo um dia dito uma coisa, agora dizem outra, literalmente oposta a convicções proclamadas e esperanças cultivadas. Desgraçadamente, a história da Nova República, assim batizada por Tancredo Neves para definir o regime que sucedeu ao regime militar, tem tido seus episódios de estelionato eleitoral, em que se promete uma coisa e se entrega outra, oposta à de direito esperada com base em programas e públicas profissões de fé.

Nos debates destes dias, o alvoroço de políticos em assegurar que se mantenham secretos documentos que podem até dizer respeito à violação de direitos dos cidadãos enfraquece ainda mais o próprio regime político, precocemente desgastado. No mínimo porque aí nos descobrimos mal representados e, sobretudo, expostos e sem direitos quanto a medidas de governo em cuja lisura nem sempre se pode acreditar. Aquela parcela da população dotada da lucidez política tão necessária ao exercício e à sustentação da democracia não poderá deixar de avaliar criticamente suspeitas decisões e suspeitas orientações quanto ao tema.

Negociando o inegociável

Convém ter em conta que o regime autoritário foi vencido em nome de valores que deveriam estar nos alicerces do regime atual. Particularmente em relação ao PT, que se proclamou partido ético, embora não fosse o único, e radicalmente quis demarcar sua diferença em relação ao regime militar em nome da vítima. No entanto, neste episódio dos documentos secretos, o recuo do governo é notório e injustificável. O que é uma aparente confusão vai se revelando mais um jogar verde para colher maduro e, em face da reação adversa, fazer a mal conduzida e confusa manobra de retirada. Mas ficou na opinião pública a dúvida quanto às verdadeiras intenções dos envolvidos, e isso não tem conserto. O cidadão tem o direito de saber o que fizeram com ele e, ao que parece, continuam fazendo.

A presidente Dilma Rousseff não só recuou na questão dos documentos secretos, mas recuou ainda em relação à questão até mais grave da discutível anistia aos torturadores, atuantes no regime ditatorial. Escorando-se numa decisão do STF, acaba de declarar que não pretende propor uma revisão na Lei de Anistia. Desde a campanha, Dilma vem recuando nessa questão e em outras questões relativas ao que foi um dia a bandeira que fazia do PT um partido novo e diferente. Já não o é. Pelas alianças feitas, pelas posições tomadas em questões referenciais para uma nova democracia no Brasil, desde Lula o PT vem negociando o inegociável e recuando para as concepções mais deploráveis de nossa história política e para o fisiologismo cujo repúdio, não nos esqueçamos, justificou a Revolução de Outubro de 1930.

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[José de Souza Martins é professor emérito da Universidade de São Paulo e autor de A sociabilidade do homem simples, ed. Contexto]