Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O impacto do fenômeno midiático nas questões educacionais

Uma das grandes transformações ocorridas nestes dois últimos séculos refere-se ao fenômeno midiático. Tomando as mídias como tema de reflexão é possível observar que além de estarem presentes em nosso cotidiano, elas se constituem em um assunto de interesse geral. Nesse sentido, precisam ser objeto de um conhecimento mais detalhado.

Como pesquisadora dos fenômenos da cultura e da educação, reflito sobre as mudanças culturais sofridas pela modernidade e seu impacto nas questões educacionais. Entendo por mídias todo o aparato simbólico e material relativo à produção de mercadorias de caráter cultural. Como aparato simbólico, considero o universo das mensagens que são difundidas com a ajuda de um suporte material como livros, CDs etc., a totalidade de conteúdos expressos nas revistas em quadrinhos, nas novelas, nos filmes ou na publicidade; ou seja, todo um campo da produção de cultura que chega até nós pela mediação de tecnologias, sejam elas as emissoras de TV, rádio ou internet. Uma produção de cultura realizada de maneira industrial – sistematicamente veiculada pelas instituições dos campos editorial, fonográfico, televisivo, radiofônico, cinematográfico e publicitário, possibilita a maior circulação de referências de estilos de vida, ideias e referências de comportamento.

Relaciono o fenômeno das mídias com a educação. Mais especificamente, considero as mídias, enquanto agentes sociais da socialização, agentes sociais da educação. Defendo que as mídias desenvolvem uma função educativa e explico essa tese ao longo do livro.

Relações de complementaridade

A presente discussão pretende também chamar a atenção para um novo campo de investigação e estudos na área da educação. Poucos são os que se dedicam a esse tema. É necessário formar uma base de interesse e conhecimento sobre este fenômeno bastante polêmico que são as mídias. Embora sejam muito discutidas, pouco ainda se sabe sobre elas. Como educadores, cremos que este assunto exige de nós uma postura de muita atenção e amadurecimento teórico. Não se trata de um assunto simples. Trata-se, antes de tudo, de um tema interdisciplinar e, sendo assim, exige uma atenção sempre redobrada. Diferentes visões ou tomadas de posição sobre o mesmo fenômeno devem e podem ser incorporadas, pois trazem novas luzes sobre sua complexidade.

O fenômeno das mídias é profundamente controverso. Ou seja, não seria possível fazer uma leitura única e acabada sobre um tema tão grandioso pautando-se em um único ponto de vista. É necessário ter consciência das teorias que uso. Dessa forma, a principal missão deste livro é tornar conhecidos para os leitores alguns estudiosos do tema. Trazer para a reflexão autores, conceitos, discussões e polêmicas a respeito das mídias é o meu objetivo. A discussão será marcada, contudo, por alguns princípios básicos, algumas hipóteses, métodos e um raciocínio de trabalho.

Primeiramente, as mídias devem ser vistas como agentes da socialização, isto é, possuem um papel educativo no mundo contemporâneo. Junto com a família, a religião e a escola (entre outras instituições), elas funcionam como instâncias transmissoras de valores, padrões e normas de comportamentos e também servem como referências identitárias.

As mídias, então, são tão poderosas quanto seus companheiros de prática pedagógica, como a família e a escola, por exemplo. A particularidade do mundo contemporâneo é que essas instâncias vivem hoje em uma tensa e intensa rede de interdependência com as outras agências socializadoras, agindo simultaneamente na formação moral e cognitiva do indivíduo na atualidade. Entretanto, a relação que mantêm entre si pode ser expressa a partir de arranjos muito variados. São relações que chamo de complementaridade ou mesmo de ruptura. As instâncias educativas podem ser aliadas ou podem viver em conflito constante. Elas podem, portanto, conviver e coexistir desenvolvendo práticas comuns ou práticas muito discordantes. Por exemplo, uma família evangélica pode se incomodar com conteúdos televisivos que discordam dos dogmas de sua fé religiosa.

Atos da troca de mensagens, códigos e saberes

Nesse sentido, não é possível mais conviver com discussões simplistas que dão uma importância irreal às mídias sem compreender a complexidade das relações que elas mantêm com as outras instâncias e situações de vida dos sujeitos. Em outras palavras, é preciso afirmar que as mídias não têm o monopólio das informações. Não agem sozinhas.

Como a família, a religião e a escola, as mídias, entre outras agências educativas, podem ser consideradas produtoras de uma nova forma de fazer cultura, construída pela própria sociedade a partir da audiência e o corpo de seus profissionais do jornalismo, produção de imagem e textos, entre outros.

Dessa forma, as mídias serão vistas aqui como espaços educativos na medida em que são responsáveis pela produção de uma série de informações e valores que ajudam os indivíduos a organizar suas vidas e suas ideias. Auxiliam, também, a formarem opinião sobre as coisas, ajudam todos nós a organizar uma forma de compreender e de se adaptar ao mundo.

Parto do pressuposto de que toda prática midiática é um ato de troca, um ato que exige a negociação de informação. Considero, pois, as mídias como agentes da comunicação, agentes do diálogo e da mediação com seus consumidores. São característicos do fenômeno midiático os atos da reciprocidade e da troca de mensagens, códigos e saberes. E, como a prática pedagógica, como a ação docente, as mídias falam com alguém, exprimem uma ideia, um conteúdo, têm intenção de transmitir, divulgar conhecimentos, habilidades e competências.

O intercâmbio da vida social

Apesar disso, as mídias – assim como o professor – não sabem como sua intenção, suas ideias, desejos e projetos se realizarão. Não sabemos, como professores, o que o aluno apreenderá de nosso discurso. O mesmo se dá com as mídias. Elas têm interesses e mensagens que consideram importantes, calculam estrategicamente como essa intenção chegará ao receptor, mas jamais saberão como foram compreendidas, apropriadas e interiorizadas pelos indivíduos. A prática de transmitir conhecimentos e valores que as mídias se propõem é um ato pedagógico e, portanto, também comunicativo. A comunicação de sentidos e valores faz parte da educação. Nesse sentido, tanto as mídias, como a prática pedagógica não viveriam sem o intercâmbio de sentidos.

No mundo moderno, com os avanços da tecnologia, das técnicas de comunicação, com a sofisticação da publicidade e de um estilo de vida em que o consumo tem um papel preponderante, os meios de comunicação de massa assumem uma expressiva importância. É momento de refletir sobre o papel pedagógico e muitas vezes ideológico das mídias. Para o bem ou para o mal, elas estão presentes em nossas vidas de forma cada vez mais precoce e cada vez mais forte. Não é possível fechar os olhos para essa realidade. É preciso, pois, estarmos preparados para a compreensão e análise desse fenômeno que diz respeito a todos nós.

Para desenvolver esses argumentos, o livro está composto de seis capítulos. O capítulo ‘Mídias: uma nova matriz de cultura’ aponta o eixo central de análise de toda a discussão. Tenho como hipótese que as mídias se constituem em uma nova matriz de cultura, isto é, uma nova e polêmica instituição socializadora. Como instituição socializadora, geraria em seu interior um sistema de valores organizado a partir de preceitos e prescrições comportamentais. Para viver em sociedade, temos que partilhar de uma série de códigos comunicativos (uma língua), temos que comungar categorias do julgamento (belo/feio) bem como estabelecer consensos sobre padrões de conduta (modas) transmitidos pelas instituições que facilitam a integração em um universo de símbolos. As mídias contribuem com esse processo de socialização e de transmissão de padrões de comportamento, sem dúvida, não isentos de tensões, mas que potencializam o intercâmbio da vida social.

Debate e investigação

Os capítulos ‘História do fenômeno e definição de conceitos’, ‘A perspectiva da Escola de Frankfurt’ e ‘A perspectiva da integração da cultura’, por outro lado, apresentam definições, autores, conceitos e perspectivas que se tornaram referência nas investigações sobre os impactos das mídias em nossa vida cotidiana. Defino conceitos, contextualizo historicamente as mídias, bem como sugiro uma metodologia de reflexão no capítulo ‘História do fenômeno e definição de conceitos’. Lembro a importância dos teóricos da Escola de Frankfurt na caracterização da cultura moderna das sociedades ocidentais e discuto o alcance e o limite de suas contribuições para os estudos desse fenômeno no capítulo ‘A perspectiva da Escola de Frankfurt’. Apontando uma outra perspectiva tão importante como aquela desenvolvida pelos pesquisadores dessa escola alemã, chamo a atenção, no capítulo ‘A perspectiva da integração da cultura’, para as reflexões de Edgar Morin. A meu ver, trata-se de uma leitura obrigatória, pois se revela complementar à anterior.

Em ‘Os estudos de recepção’, apresento o ponto de vista dos estudos de recepção. Enfatizando as investigações que denunciam aspectos do conteúdo das mensagens midiáticas e seus efeitos em um público consumidor, o fenômeno das mídias é apontado como um fenômeno comunicativo, ou seja, um tipo de relação social que implica um diálogo constante entre emissor e receptor. Destacando a figura do pesquisador Jesús Martín-Barbero, apresentamos as tendências atuais de investigação nesse campo.

No capítulo ‘A cibercultura, o ciberespaço e a educação’, finalizo a discussão, mostrando aspectos relativos ao ambiente cultural inédito da vida social e das experiências educativas na atualidade, derivado das novas redes de comunicação virtual.

Essas reflexões pretendem partilhar uma abordagem teórica e metodológica com colegas e alunos, pois há muito têm auxiliado nas investigações sobre o fenômeno das mídias. Isto é, para aqueles que têm familiaridade com as mídias, o objetivo é estimular o debate e, para os novatos, a intenção é convidá-los a fazer uma imersão nesse amplo, diverso e instigante campo de investigação.

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Livre-docente da Universidade de São Paulo, leciona na graduação e na pós-graduação da Faculdade de Educação da USP