Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O mérito ao contrário

Na Folha de S.Paulo de domingo (15/8), uma charge de Jean Galvão pega carona na piada pronta que a Secretaria de Educação de São Paulo soltou recentemente, em parceria com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), com a USP e a Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe).

Uma iniciativa inesperada, custosa, duvidosa e diria até perniciosa. O título quer nos entusiasmar: ‘Programa Multiplicando Saber’. O investimento total para este programa será de US$ 663 mil, em que a Secretaria participará com US$ 130 mil, o BID com US$ 200 mil e os demais parceiros com US$ 333 mil. Na prática, estão previstas sessões de estudo de matemática para alunos do ensino fundamental, sob a orientação de outros estudantes provenientes do ensino médio da rede estadual paulista.

Quem terá redigido essa explicação tão positiva sobre o Programa?

‘Em dois dias da semana, durante 12 semanas, o tutor se reunirá com o grupo de pupilos para auxiliá-los na compreensão do material ensinado pelo professor de matemática em sala de aula. A tutoria deve se desenvolver em um ambiente informal e flexível, mas focalizado no aprendizado do conteúdo de matemática, conforme ensinado pelo professor. Em tal atmosfera, semelhante a uma aula particular, não só o aprendizado do conteúdo deve ser facilitado, como também a transferência dos tutores para os pupilos de outros valores positivos – como a importância da educação, sociabilidade, estratégias efetivas de estudo, e interesse pela matemática. Nesta atmosfera informal e menos estruturada que a sala de aula, os alunos sentem-se mais confortáveis para colocar suas dúvidas e interagir de forma proveitosa com seus pares.’

Uma decisão desesperada?

Os pupilos (o redator desse texto terá nascido no século 18?), nesse primeiro momento, serão alunos dos 6º e 7º anos do ensino fundamental, com 11 a 12 anos de idade (ou mais velhos, como sabemos que existem). Os tutores serão adolescentes do 2º e 3º anos do ensino médio e receberão bolsa mensal de R$ 115 entre setembro e novembro deste ano. A nobre missão desses adolescentes será atuar como verdadeiros educadores, sem nenhuma experiência docente, sem diploma de Pedagogia e sem, sequer, terem participado de curso algum da ‘revolucionária’ Escola de Formação de Professores criada pelo governo Serra…

O Programa é apresentado como se tudo fosse muito natural. A meta é identificar 35 ‘pupilos’ por escola de ensino fundamental e 15 ‘tutores’ por escola do ensino médio. Mas o que realmente causa surpresa e apreensão é que os estudantes com baixo rendimento em matemática receberão ajuda monetária, como explica o artigo da Folha de S.Paulo do dia 13/8:

‘O governo de São Paulo vai pagar até R$ 50 a alunos do ensino fundamental (11 e 12 anos) com notas baixas que participem de aulas de reforço em matemática – disciplina em que os resultados da rede estadual são piores. O dinheiro será dado diretamente ao estudante, e não a sua família.’

Ora, que tipo de reação se espera dos professores, da mídia e da população perante esse programa? Por que a Secretaria de Educação de Paulo Renato Souza não consultou os pais desses alunos? Terá perguntado aos especialistas em educação se essa tutoria remunerada é uma boa solução? Ou a psicólogos, sobre o que significa para uma criança de 11 anos receber uma espécie de esmola de luxo de R$ 50,00 diretamente do gestor público? Ou estamos diante de uma decisão desesperada, cujo pano de fundo é a campanha presidencial, momento em que o PSDB precisa mostrar algum tipo, qualquer tipo de serviço no campo educacional?

Iniciativa bizarra

Essa experiência de ensino mútuo é bem conhecida dos historiadores da educação, e conhecida como recurso anacrônico. Trata-se do ‘sistema monitorial’ ou ‘sistema de Lancaster’ que, no contexto do século 19, nos Estados Unidos e posteriormente no Brasil, servia como medida provisória e precária para acolher o número cada vez maior de alunos provenientes de classes pobres. Havia escassez de professores. Era uma medida de emergência.

O governo estadual quer provar, por acaso, que não temos professores disponíveis ou capacitados em São Paulo para ensinar matemática em aulas de reforço? E se não os temos, com quem os alunos do ensino médio aprenderam para, agora, cumprirem essa tarefa em lugar dos seus mestres? E se faltam professores, não será por que a profissão docente continua a ser muito pouco atraente do ponto de vista salarial?

Uma leitora do Portal Terra fez o seguinte comentário depois de ler a matéria:

‘[…] Trata-se de bolsa eleição, pois ao invés de investirem em salas com 25 alunos e salários dignos aos professores, preferem comprar os votos de adolescente para ensinarem seus colegas, recebendo mais que o professor que estudou muito para se graduar, prestar concurso e se manter na docência, mesmo sendo uma profissão atualmente sem nenhuma decência’ (Vera Filósofa).

E o conselheiro estadual da Apeoesp (Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo) José Wilson de Souza Maciel fez uma declaração que vale a pena difundir: ‘É o fim do mundo você ter de pagar para motivar o aluno a ir a uma aula, isso é o caos da educação. Os estudantes têm de frequentar a escola sabendo que se preparam para o futuro.’

Professores e seus sindicatos, autoridades políticas e educacionais precisam refletir sobre várias questões que estão em jogo aqui:

** Institucionalizar a ajuda entre alunos mediante pagamento de bolsa promove a mercantilização da solidariedade em sala de aula.

** Incentivar monetariamente quem não tem bom desempenho escolar, remunerando-lhe a presença em aulas de reforço que, afinal, são um direito do aluno, gera a sensação de que estudar e obter boas notas não compensa…

** Pagar R$ 50,00 diretamente aos alunos é um risco. Não se despreze a possibilidade de esse dinheiro, entregue à revelia dos pais, ser usado em consumo de bebida alcoólica, drogas etc.

** Fazer circular notas de R$ 50,00 no ambiente escolar pode criar ocasiões de bullying no dia do pagamento…

** Imiscuir recebimento de dinheiro em nome de incentivo ao estudo é uma forma de desmoralizar, não só os professores, mas a própria família do aluno e, em casos mais graves, suscitar situações anômalas em que a criança sofrerá pressão para ter notas baixas.

É de se esperar, por fim, que o MEC esteja atento a essa bizarra iniciativa, a essa piada de péssimo gosto. E que se manifeste.

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Doutor em Educação pela USP e escritor; www.perisse.com.br