Meu anjo,
“É um escândalo! Todo o dia elogios, adjetivos e encher o… desses pulhas aí! Já disse que `eminente´ aqui é só o José Bonifácio. Arre! Quem é esse tal Ruskin que morreu?”
Quem escreve isso não sou eu, mas o Lima Barreto. O protesto enfurecido acima reproduz – nada mais, nada menos – trecho das Recordações do Escrivão Isaías Caminha (Penguin & Companhia das Letras, 2010) e o dono da fala é um diretor do jornal O Globo. Ruskin – claro – era o crítico de arte John Ruskin, famoso por suas Pedras de Veneza, que nos lembrou que as coisas mais bonitas são as mais inúteis, como pavões e lírios. E deixou algumas páginas de seu diário em branco para marcar o surto psicótico do qual foi vítima durante alguns meses e que chamou de O sonho.
Na mesma página das Recordações citada acima, a nota de rodapé de Isabel Lustosa esclarece que o incidente no Globo lembra outro em que Oscar Pederneiras, redator-chefe do Diário de Notícias, recusou uma coluna de Artur Azevedo em 1886, porque o autor colocava Sarah Bernhardt acima de Eleonora Duse na Dama das Camélias. Impossível! A comparação contrariava a afirmação anterior do jornal de que a Duse era a maior de todas. Muito bom que a referência a Sarahs e Eleonoras apareça aqui porque lá embaixo vou falar de outras estrelas e assim fica tudo entrelaçado.
Quem diria. Fui entrando de sola no assunto, sem nem mesmo anunciar o que me vai pelo pensamento e tens todo direito de perguntar por que te escrevo este e-mail quilométrico e cubista. Não é meu estilo. E-mails nasceram para recados, duas linhas e olhe lá, regra que sigo ao pé da letra da mesma forma como obedecia ao pai, dono do telefone que não era para bater papo. E, quando Laurinda ligava, eu ficava na maior aflição pedindo à Virgem Santíssima que ele não aparecesse na porta de testa franzida e me pegasse naquela conversa que não tinha fim.
“O ritmo do canto de saudades”
Agora me explico. Preciso de teus conselhos. Passei dias flanando. Quase. Li montes de livros e com certeza tive de dar aulas e resolver todas as misérias da casa e outras coisas que não precisas saber. Mas o fato é que ainda não escrevi a coluna da semana e não consigo me decidir. Quem sabe alguma coisa sobre as Putas Assassinas do Roberto Bolaño? O livro começa bem, com as histórias de exilados chilenos, mas quando chega a vez de Villeneuve, o necrófilo parisiense, me confundi. Oscar Wilde diz pela boca de um de seus personagens que “os bons terminam bem e os maus terminam mal e isso é o que ficção significa”. Mas hoje está tudo mudado. Villeneuve faz o que faz e no dia seguinte os alugadores de cadáveres vão buscar o corpo e fica tudo por isso mesmo.
Estou fugindo do assunto. O tema são os jornalistas e eu tinha começado com o livro do Lima Barreto. Para lá voltamos. Nem só de pilhérias vive a sátira, pois o protagonista-narrador de Recordações soma às caricaturas dos colegas seu desabafo pessoal ao descobrir na sala de redação o arbítrio, a hipocrisia, o mercado literário, os bastidores da política e as contradições do mundo. Mas não tomemos tudo como vileza. À vida do jornal, Isaías mistura outros modos de sobreviver em trechos de grande poesia:
“Durante todo esse tempo, residi em uma casa de cômodos na altura do Rio Comprido. Era longe; mas escolhera-a por ser barato o aluguel. Ficava a casa numa eminência, a cavaleiro da Rua Malvino Reis e, atualmente, os dois andares do antigo palacete que ela fora estavam divididos em duas ou três dezenas de quartos onde moravam mais de 50 pessoas. O jardim, de que ainda restavam alguns gramados amarelados, servia de coradouro. Da chácara toda, só ficaram as altas árvores, testemunhas da grandeza passada e que davam, sem fadiga nem simpatia, sombra às lavadeiras, cocheiros e criados, como antes o fizeram aos ricaços que ali tinham habitado. Guardavam o portão duas esguias palmeiras que marcavam o ritmo do canto de saudades que a velha casa suspirava.”
Retrato fragmentado da redação
Volto aos meus dilemas. Talvez eu pudesse escrever uma coluna comparando as Recordações centenárias e atuais, com outro livro mais recente. Tom Rachman – sem os trechos líricos de Lima Barreto e usando a terceira voz no lugar da primeira – adota estratégia não muito distante da usada nas Recordações do Escrivão Isaías Caminha. Pois também ele mistura a vida da redação às experiências privadas dos jornalistas em The Imperfeccionists (Dial Press Trade Paperbacks, 2011). O público e a crítica receberam com entusiasmo o livro de Rachman, ainda sem tradução em português. Em inglês, já se transformou em best-seller. Figurou entre os melhores romances de 2010 em jornais e revistas como o New York Times, The Economist, o Financial Times e em muitas outras listas.
Os personagens, na sua maioria, trabalham para um jornal internacional de língua inglesa com sede em Roma fundado por um americano excêntrico, Cyrus Ott, nos anos de 1950 – por razões que só ficam claras no fim da história. Cinco décadas mais tarde, seu neto, Oliver – que se importa apenas com seu cachorro bassê, o Schopenhauer –, chefia o destino dos jornalistas cujas histórias compõem o romance. O narrador consagra cada um dos capítulos do livro a um dos colaboradores do jornal (do editor-chefe ao revisor) e a um leitor e cada capítulo carrega um título de primeira página, o nome do colaborador e sua função. Por exemplo, o tirano que impõe correção gramatical aos colegas, Herman Cohen, é o protagonista do capítulo “Global Warming Good for Ice Creams – Corrections Editor”.
Pode-se ler cada um dos capítulos como um conto que traz – como convém a um conto de categoria – uma revelação inesperada. No fim da leitura, os capítulos se compõem para formar o retrato fragmentado da sala de redação, com cada figurante visto sob diferentes ângulos. Entre os capítulos, o narrador consagra algumas páginas em itálico à família Ott. Um belo dia, Oliver encontra a carta em que seu avô revela a verdadeira razão pela qual ele criou o jornal. Mas deixo para ti a descoberta.
Ponto final
Rachman, que também já foi jornalista, conhece a miopia de sua antiga ocupação e ama o humor de seus profissionais. Agora, que virou romancista de sucesso, abandonou a precariedade de um negócio que muitos acham que anda ameaçado. O capítulo final de seu livro poderia ser lido como o epitáfio do mundo jornalístico. Que deus nos proteja. Muita gente achou o livro de Rachman hilário. Mas, para uma boa risada, ele perde para a chanchada de Billy Wilder A Primeira Página, que tem Jack Lemmon como repórter e Walter Matthau como seu editor-chefe.
E, por falar em jornalistas no cinema, nada melhor que o Profissão Repórter, de Michelangelo Antonioni, com Jack Nicholson ainda jovem e bonito, antes do Chinatown e antes de virar superastro e muito antes de se tornar o velho debochado e asqueroso de hoje em dia. Profissão Repórter tem também Maria Schneider, no auge de sua carreira, logo depois do Último Tango. Ela está encantadora com seu rostinho adolescente. Elegantíssima e muito senhora de si, nem parece estar representando e não dá mostra do desequilíbrio nervoso atribuído por muitos à violência de que foi vítima no filme anterior.
Além das imagens belíssimas dos vilarejos no deserto do sul da Argélia e da Espanha, Antonioni mostra certo engajamento no retrato da violência da década de 60, embora o filme não seja político. Nem sobre jornalistas, para falar a verdade. O título do filme deveria ter sido O Passageiro, já que a profissão do jornalista não é essencial ao tema daquele passageiro na vida de outra pessoa, passageiro em outra identidade que não a sua. Mas, se vamos falar de Antonioni, em mais um parágrafo chegaríamos ao Blow-up e acabaríamos nas babas do diabo. Aí já seria demais. Melhor pôr o ponto final por aqui.
Escreve de volta com teus conselhos bem depressa, porque devo entregar a coluna antes do fim do dia, que está chegando muito mais depressa do que eu esperava. Ai, ai. Se te dou meia hora, desconfio que tenha de me virar sozinha, mas tem a vantagem de ficar livre de te ouvir dizendo que devo recomeçar do zero. Talvez o editor seja mais compreensivo. De qualquer jeito, te amo, na semana que vem tem feriado e vamos passear.
Mil beijos da irmãzinha.
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[Eliana Cardoso é colunista do Valor Econômico]