Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Alguém como nós na Cracolândia

A edição da Folha de S.Paulo de terça-feira (14/6) provocou uma enxurrada de protestos de leitores, chocados com a exposição pública de um homem de meia idade, grisalho, de terno e gravata, na região da Cracolândia, no centro de São Paulo. A sequência de quatro fotos, que ocupava exclusivamente a capa do jornal, mostrava-o comprando a droga, preparando o cachimbo, fumando ali mesmo e depois indo embora.

A repercussão foi tal que a ombudsman Susana Singer dedicou sua coluna do domingo seguinte (19/6) a esse tema. “Além de figurar na primeira página, o flagrante está na internet, em fotos e vídeo da Folha.com. Porque a Folha decidiu expor dessa forma um suposto viciado?”

Porque o jornal sempre agiu assim – foi, em síntese, a resposta da Secretaria de Redação. Sempre expôs os usuários de crack e não deveria alterar seu comportamento apenas porque, desta vez, o “personagem” usava terno e gravata.

(Jamais me acostumei com a maneira pela qual, de uns tempos para cá, os jornalistas passaram a se referir às suas fontes. Mas é apenas um registro, a justificar as aspas: discutir essa forma de nomear exigiria uma argumentação que acabaria desviando o foco deste artigo.)

Estranho no ninho

“A gravata na Cracolândia”, sem dúvida, chama a atenção pela presença de um tipo estranho aos frequentadores do local, normalmente pobres, maltrapilhos, envolvidos em cobertores imundos. A surpresa diante da cena inesperada levou à indignação contra o dano previsivelmente causado àquele homem: ele pode perder o emprego, pode passar a ser discriminado por colegas e vizinhos. Como retornaria para casa depois daquelas fotos? Como iria encarar a família?

Porém, a pergunta recorrente – “que direito tem o jornal de expor uma pessoa que está consumindo drogas?” – jamais foi feita antes, nas inúmeras vezes em que este e outros jornais exibiram os “personagens” habituais da degradação social. “Parece-me que os ‘mal trajados’ não recebem a mesma manifestação de solidariedade, preocupação e defesa dirigida aos ‘engravatados’”, notou uma leitora.

Não é difícil imaginar por quê: a escória social provoca, alternativa ou concomitantemente, uma reação de medo, repulsa e compaixão, mas ninguém enxerga esses… “personagens” como sujeitos de direitos. Ninguém protesta contra a exposição deles. Porque, afinal, eles não são como nós.

Eis que, de repente, um dos nossos aparece misturado à escória e é como se fosse conosco.

Privacidade, publicidade e ética

A reação chegou ao ponto de acusar o jornal de invasão de privacidade, o que provocou comentários irônicos de Luiz Caversan, em artigo no site da Folha, que começava com o velho recurso ao argumento de autoridade: “O premiado repórter fotográfico Juca Varella [o autor das fotos], um dos melhores do país…”. Como contestar o trabalho de um dos melhores repórteres fotográficos do país, não é mesmo?

Para Caversan, que foi diretor da sucursal da Folha no Rio, tudo é muito simples: se estamos em local público, não podemos alegar invasão de privacidade. Portanto, quem usa drogas no meio da rua “corre o risco, sim, de ir parar na primeira página do jornal”. Conclusão: “Isso dói para o retratado, mas chama-se jornalismo, ok?, porque não existe privacidade em praça pública”.

Juridicamente, a questão da privacidade é bem mais complicada – como, aliás, notou a ombudsman em seu artigo. Mas o problema, aqui, é acima de tudo ético, e exige sensibilidade e consideração sobre as consequências do que se publica, especialmente quando se está lidando com uma situação tão delicada como a dos usuários – e, eventualmente, dependentes – de drogas.

O apelo ao “interesse público”

Susana Singer informou, em sua coluna, que a Secretaria de Redação discutiu os possíveis danos que a exposição do rosto daquele homem poderia lhe trazer, “mas o interesse público da reportagem fotográfica, de mostrar que o fenômeno do crack não se confunde com pobreza e não atinge apenas moradores de rua, prevaleceu na decisão de publicar as imagens”.

O interesse público é sempre um nobre argumento.

Fosse esta a intenção – mostrar que senhores bem vestidos (isto é, gente como nós) circulam pelo submundo e consomem crack –, bastaria publicar as fotos com o cuidado de borrar a face do “personagem”, de modo a não identificá-lo.

Qual o interesse público de expor a imagem de um usuário de droga, apenas porque ele usa terno e gravata?

Repensar a política editorial

Sem contar que aquelas fotos, com aquela chamada, levariam a supor que a reportagem abriria o caderno “Cotidiano” e daria destaque aos casos de usuários de crack de status social mais elevado. Mas, não: a matéria está numa página interna e trata da reclamação de moradores contra a polícia, que não estaria atendendo às denúncias sobre a concentração de “noias” e traficantes no local. O “personagem” tão escandalosamente exibido na capa do jornal é mencionado em três linhas ao pé da matéria, numa alusão sobre usuários eventuais, “até mesmo senhores com cerca de 60 anos vestindo terno e gravata”. Ou seja, a “gravata na Cracolândia” é exceção. Porém, critérios editoriais esdrúxulos são tão recorrentes que já não causam surpresa.

Apesar disso, valeria a pena repensá-los, retomando a antiga prática do jornalismo de estabelecer uma coerência entre os destaques de capa e as respectivas reportagens. No caso em questão, mais relevante ainda é repensar o comportamento rotineiro de expor o rosto de gente fragilizada, use ou não gravata, e parar de exibir essa tragédia social pelas lentes do voyeurismo. Como disse a ombudsman, “o correto é não expor ninguém, independentemente da sua situação econômica, porque o vício deve ser tratado como doença, e não como crime”.

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[Sylvia Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)]