Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Retratos com humor e refinamento

Um vulcão de criatividade. Nasceu no Rio de Janeiro em 1884. Sua primeira erupção foi em 1902, aos 18 anos, no Tagarela. Depois, labaredas em vários livros, revistas, semanários e jornais ao longo da vida: Para Todos, O Malho, Careta, Tico-Tico, Fon-Fon, A Avenida, Revista da Semana, O Cruzeiro etc. Foi lido e visto de cabo a rabo por todo o país. Além de chargista, publicitário e designer gráfico, supervisionou diagramações e chegou a desenhar para 10 publicações ao mesmo tempo. Forno aquecido e alma flamejante, grande cronista visual, retratou e recriou com humor e refinamento personagens populares urbanos, os costumes, a política, o futebol e a vida cultural no Brasil das primeiras décadas do século 20.

Por outro lado, pacifista, cidadão antiautoritarista, descontente e meio libertário. Foi um profissional que soube ler as entrelinhas da linguagem. Rei dos recursos gráficos, com seu traço preciso e elegante. Morreu aos 66 anos, na mesma cidade que nascera, num sábado, 2 de outubro de 1950, meses após o Brasil perder a Copa de Mundo de Futebol para o Uruguai e um dia antes das eleições que trouxeram de volta Getúlio Vargas ao poder.

A brasa final: de acordo com a história (uma das versões), seu corpo caiu como um fruto maduro em cima de uma prancheta de trabalho. Nosso Senhor do Bonfim e Nossa Senhora da Penha deram-lhe a graça e honra de fenecer a última centelha junto daquilo que mais gostava de fazer: caricaturas. Dizem que ao lado estava o esboço da capa de um disco de Braguinha.

Contraditório e profético

Colecionador nato, profícuo, ilustrou diversos temas e assuntos (segundo pesquisadores, produziu mais de 100 mil trabalhos), Hermes Tropical, faísca e visionário: “Sua clarividência era por via de regra mediúnica. Intuiu o assassinato de Pinheiro Machado; marcou vinte anos antes do prazo exato em que estouraria a II Guerra Mundial; antecipou em quarenta anos o desmonte dos blocos de países comunistas e profetizou que a recém-rebatizada Leningrado voltaria a se chamar São Petersburgo. No próprio Malho, cantou três anos antes a pedra de que Washington Luís romperia com Minas Gerais o pacto do café-com-leite” [SIMAS, Antonio Luiz. O Vidente Míope: J. Carlos n´O Malho (1922-1930). Org. Cássio Loredano. Rio de Janeiro: Edições Folha Seca, 2007]. Só não previu a Revolução de 1930 liderada por Getúlio Vargas.

J. Carlos é um reflexo cristalino e crítico – com direito a lavas surgindo do morro do Pão de Açúcar – do processo de modernização e urbanização do Rio de Janeiro. Para alguns, foi um futurista sobre duas rodas. Realizou uma interface elaborada com a história. Desde a higienização, traçado urbano, qualidade dos serviços públicos, pavimentação, transporte coletivo, sob o olhar maroto, observou em suas crônicas visuais a transformação da metrópole à custa de aumentos estrondosos dos impostos na adequação da capital federal como uma cidade cosmopolita, aos moldes de Paris. Na gênese de sua visão modernista, foi um comentarista esclarecido e opositor ferrenho da cultura importada.

Contradições das contradições, antecipou o caos urbano, pois investiu contra um dos símbolos de um projeto maior da civilização humana: o automóvel. Por extensão, bem contemporâneo, pegando um gancho na fagulha do parágrafo anterior, abriu fogo, mirou e acertou sem querer em mais uma previsão: hoje, a poluição (principalmente a emissão de CO2) é um problema e tanto mundo afora, sem falar no confuso sistema de transporte carioca.

Visão modernista

Apoiou a oficialização do Carnaval (1927) e bateu de frente com os “cérebros privilegiados” da época. Colocou “fogo na canjica” da “emergente e estudada” elite carioca. Na década de 1920, o caricaturista, patriota declarado, insistiu em três pontos fundamentais que ainda rondam um projeto maior, edificante e estatuto sério para o emergente país tupiniquim: o analfabetismo, altos impostos e a corrupção política. Oxalá não esteja errado, J. Carlos é mais contemporâneo (contemporâneo e coletivo seriam os termos mais exatos) que muitos artistas da atualidade, que exalam um individualismo massacrante, característica da nossa época. Outro detalhe que não pode passar batido: ajudou também na popularização do futebol, não sem antes criticar a importação (Clube de Regatas Vasco da Gama X Alfândega) dos materiais para a construção do Estádio de São Januário, inaugurado em 21 de abril de 1927, na cidade do Rio de Janeiro. Se estivesse vivo, com certeza, compraria briga com a CBF (Confederação Brasileira de Futebol), Fifa (Federação Internacional de Futebol, do francês Fédération Internationale de Football Association), COB (Comitê Olímpico Brasileiro) e COI (Comitê Olímpico Internacional), diante da falta de planejamento e previsões de gastos estratosféricos para a realização da Copa do Mundo de Futebol (2014) e Olimpíadas (2016) no Brasil.

Faz parte da memória e história gráfica nacional. Teve a visão modernista (como ideia, linguagem e necessidade), alicerçada no folclore, liberdade de expressão, emancipação artística, atração e ação para a heresia no espaço das formas, ao utilizar as suas criações artísticas como instrumento de crítica capaz de colaborar no desenvolvimento de uma mentalidade e cruzada cívica em prol dos valores brasileiros. Malhou na bigorna quente tudo aquilo que fosse ao desencontro dos símbolos que caracterizam a pátria.

E, o mais importante: seu conjunto bem-sucedido de obras realizadas, nos seus devidos suportes, está correlacionado à vida social. Obras aparentemente inocentes que partem do realismo para subvertê-lo, utilizando uma liberdade criativa que ironicamente pela visão do espectador, sua experiência e observação, acrescentam ao imaginário coletivo, além do humor e irreverência, um conjunto novo de simbolismos e antídotos contra o naturalismo (devemos lembrar sempre que o modernismo surge do naturalismo; parte dele para confrontá-lo. O modernismo é uma reação ao naturalismo, enquanto movimento), imerso numa matriz ainda ligada aos valores conservadores e deterministas. Ou seja, o artista realiza a experiência modernista (parece que inconscientemente, mesmo estando no Rio, por telepatia, dialogava com a turma da Semana de 22. Não temos evidências de ligações ou trocas de correspondências dele com os paulistas) da falta de decoro.

Interessante, fator que remete ao anti-naturalismo, são os traços, cores, combinações inusitadas e distorcidas (muitas delas exageradas) de suas imagens em relação às aparências da natureza. Misturas cromáticas vigorosas e sensualidade das formas curvas, que reporta à art déco. Outra questão reiterada que merece ser observada em seus desenhos é o caráter anti-acadêmico, não se prendendo aos rigores e métodos adotados por algumas escolas de artes da época no Brasil.

A melindrosa

Um exemplo notável dos diálogos imagéticos modernistas (principalmente, em sintonia com a art déco) sobre o processo de composição, relembra aspectos advindos da profusão, marcadamente presente no Barroco. A profusão é uma técnica utilizada para o enriquecimento visual associada às questões do poder e riqueza. Também ao embelezamento e ostentação. A ilustração irônica de J. Carlos ressalta estas qualidades. Pois o poder está com Ela: a moça moderna, cheia de graça, beleza, charme e ousada. E dela brota a ornamentação, o ritmo, acento e apelo visual, usando o próprio nome da revista. Por extensão, para todos os olhares e admiradores. E o melhor do carioca: a imagem lembra uma ala de escola de samba. Capitaneada por Ela, a melindrosa, e sua elegância são os motores da composição. A cor preta na parte de baixo (usada com extrema sensibilidade e de maneira intencional, sendo um contraponto em relação aos traços e cores em suas variadas tonalidades na parte de cima) é o tapete e o elemento visual garboso para o restante das figuras, tendo como base e sustentáculo a mulher.

O foco/eixo principal/central parte da passista sedutora e seu vestido realçante, complementando a distinção necessária. A perna posta adiante produz uma aparente sensação de que Ela sozinha não conseguirá segurar/equilibrar o peso e o ritmo da enxurrada de homens que a contemplam de maneira sequiosa. Novamente, faz sentido falar no preto (cor símbolo do anarquismo; ausência de luz; etc.) que absorve toda a profusão da parte superior, e irradia o ritmo imposto pela caminhada, servindo com uma espécie de freio/amortecedor da multidão, colocando uma certa ordem na marcha, parecendo dizer para quem vai atrás dela: “Não ultrapassem a melindrosa. Podem olhar, mas não coloquem as mãos. Coloquem as mãos noutro lugar: comprem Para Todos.” O contexto da escala, relação tamanho de campo e sua dinâmica, amplia o conhecimento da visualização, pois a aglutinação (reavivamento da profusão ao misturar as cabeças uma nas outras e chapéus, prevalecendo um tom pastel para as cores) é feita com medidas e tamanhos proporcionais na primeira fila de homens, seguida pelo efeito de desampliação, tornando mais evidente a mulher e a primeira coluna masculina. A desordem e tensão estabelecida na parte de cima da imagem é sustentada/amparada pela cor preta e a figura dela (referenciais primeiros), eixo vital de toda composição gráfica.

O estilo ornamental, utilizando quase todo o espaço da página, enfatiza um abandono da realidade em favor do mundo da fantasia e o delírio, criando laços com o surrealismo. Com certeza é isto que se passa pelas cabeças e passos masculinos acelerados atrás dela. A exuberância da imagem ressurge numa postura simbólica e tentação regida pelo desejo e o sonho, ao observar que a multidão é a estratégia estética e complexa de toda a trama da diagramação. Um amontoado de machos aparentemente bem comportados. O referencial secundário é este. A tensão, impacto e contraste estão em (re)articular a dicotomia apresentada, estabelecer a harmonia entre os dois volumes que se atraem, as duas referências (a inferior, principal com o título da revista, perna e parte do corpo dela, com ¼ da página e a superior, secundária com o agrupamento de figuras em profusão, com ¾), que reforçam a mensagem através da técnica e desenhos apurados, acertando a forma, disposição e o conteúdo, não dando margem para dúvidas. J. Carlos, com certeza, trabalhava com o conceito de eficácia visual.

Um pacifista internacional

As comparações em relação ao Naturalismo e ao Academicismo são importantes para contextualizar o contraste e a experiência modernista do artista; apresentar e diferenciar que espécie de linguagem e crítica se destacam sobre a cultura e padrões de valores estabelecidos. J. Carlos concebeu uma forma alternativa e plural para vivenciar, experimentar e expressar a originalidade de sua percepção sem perder a identidade e o estilo frente às tendências, idéias feitas e crenças dominantes na época. Olhou para o passado, desviou a direção e realizou a sua progressiva carreira e capacidade imaginativa.

Reavivou em seus desenhos os principais acontecimentos nacionais e internacionais, nos quais o branco, o negro e o índio (também em menor quantidade os imigrantes) formavam a “tríade da dignidade nacional”. Descobriu e embalou o Brasil (principalmente nas décadas de 1920/30/40) e manteve a sua atitude pacifista internacional (décadas de 1910 e 1940).

Contradições das contradições (novamente), foi um homem de posições políticas conservadoras, todavia defensor da liberdade de expressão.

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[José Aloise Bahia é jornalista e escritor]