Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O bombardeio midiático: lições de uma eleição

Se acontece mais de uma vez, não deve ser casualidade. E aconteceu. Ollanta Humala ganhou o segundo turno apesar do ataque virulento de El Comercio, o grupo midiático que domina o mercado do Peru. O fenômeno repete o que ocorreu nas últimas eleições presidenciais sul-americanas, vencidas pela brasileira Dilma Rousseff, em outubro último, com 54% dos votos.

O grupo El Comercio, da família Miró Quesada, controla o jornal do mesmo nome. Foi fundado no século 19 como La Nación, tem o peso empresarial do grupo Clarín e dispõe da capacidade articuladora de interesses que, juntos, ambos representam. Também é co-proprietário da TV Peru, que por sua vez controla a Plural TV, que por sua vez controla a Companhia Peruana de Radiodifusão e Produtora Peruana de Informação (Canal N). Além do jornal El Comercio, o grupo é dono de outros três, Trome, Peru.21 e Gestão, e das revistas Somos, Ruedas y Tuercas, e PC World. Foi daí que partiu o bombardeio massivo (cargamontón, como se diz no Peru) contra Humala e a defesa de Keiko Fujimori.

Na agressão, El Comercio perdeu seu principal colunista, Mario Vargas Llosa. O escritor deu instruções ao jornal El País, da Espanha, que vende suas colunas, para mudar-se para o jornal La República, onde começou a publicar no domingo das eleições. Antes enviou uma carta de renúncia a Francisco Miró Quesada, diretor de El Comercio. Vargas Llosa escreveu:

“Desde que um punhado de acionistas, encabeçados pela senhora Martha Meier Miró Quesada, tomou o controle desse diário e do grupo de canais de televisão e periódicos dos quais é proprietário, o jornal se converteu em uma máquina propagandista da candidatura de Keiko Fujimori, violando as mais elementares noções da objetividade e da ética jornalística; silencia e manipula informações, deforma os fatos, abre suas páginas às mentiras e calúnias que podem prejudicar o adversário, ao mesmo tempo em que, em todo o grupo, jornalistas independentes são demitidos ou intimidados e se recorre às insídias e golpes baixos das piores pesquisas que vivem do sensacionalismo e do escândalo.”

Na política, valem os fatos

E acrescentou:

“Não posso permitir que minha coluna `Pedra de toque´ siga aparecendo nesta caricatura do que deve ser um órgão de expressão genuinamente livre, pluralista e democrático.”

Vargas Llosa não é um esquerdista desaforado. Os leitores do Página/12 tiveram a oportunidade de conhecer em primeira mão, na entrevista publicada no dia 22 de abril, suas advertências contra “as debilidades coletivistas” dos social-democratas e sua afirmação de que “a intervenção do Estado gera injustiça”.

Em 1990, após ser considerado favorito, Vargas Llosa perdeu as eleições para Alberto Fujimori, que o derrotou no segundo turno. Depois, em 1992, o escritor se opôs ao auto-golpe e à dissolução do Parlamento. A reação de Fujimori foi tão violenta que a Espanha concedeu nacionalidade a Vargas Llosa para apoiá-lo.

O caso de Vargas Llosa marca um ponto interessante no debate sobre os meios e o poder. Vargas Llosa deixou o jornal El Comercio porque viu ferido seu narcisismo ante uma possível vitória de Keiko Fujimori, a filha do tirano? É uma pergunta que não tem resposta. Talvez tampouco tenha sentido. Na política, valem os fatos. E Vargas Llosa produziu três. Um, anunciar seu voto para Alejandro Toledo, no primeiro turno. Disse que eleger Humala ou Keiko era “escolher entre o HIV e o câncer”. O segundo fato, depois da derrota de Toledo, foi avisar que votaria em Humala considerando-o um “o mal menor”. O terceiro foi abandonar El Comercio.

“Um governo de concertação nacional”

Para além do que vai ocorrer no futuro entre Humala e Vargas Llosa, uma hipótese é possível: o autor de Os cachorros deixou El Comercio porque acreditou que o grupo midiático ultrapassou um limite. Qual? O limite da democracia. Vargas Llosa é um liberal que, com incongruência, apoia neoconservadores que sustentaram ditaduras, como Milton Friedman, no caso do Chile, às quais ele mesmo se opôs. Convém levar em conta que Humala ganhou no segundo turno por pouco menos de 3% dos votos: 51,45% contra 48,54. Se sua base foram os pobres da serra e os pobres do litoral, é evidente que conseguiu desequilibrar o resultado com o apoio de uma parte dos setores médios e inclusive de setores médios com explícitas ideias de centro-direita, como Vargas Llosa.

Humala derrotou o grupo El Comercio? Talvez seja mais proveitoso experimentar outro cenário: Humala liderou uma mudança e entrou em sintonia com ela, enquanto El Comercio foi contra. E a mudança – presente no humor social, no sentido comum, na alma dos peruanos – varreu tanto Keiko como El Comercio. Se os grandes grupos de poder não são invencíveis, por que o seriam os grupos midiáticos gigantes que articulam a expressão desses grupos? Por que triunfariam quando diante deles há uma aliança social e uma construção política?

O nome de Lula ressoou na campanha peruana. É possível que, como símbolo, a palavra Lula desperte menos resistências que a palavra Chávez. Mas, como estratégia de fundo, e não só de marketing eleitoral, Humala se inspirou no método lulista de alianças. Entre o primeiro e o segundo turno, não teve dúvida em reunir-se com Toledo, em agradecer o apoio de Vargas Llosa e em prometer que faria “um governo de concertação nacional” baseado na honestidade. E, ao mesmo tempo, manteve sua promessa dupla de ampliar as políticas sociais de educação, assistência e saúde e de implantar um imposto especial para a renda extraordinária da mineração. O grupo El Comercio, como Keiko, acabou indo contra a maioria dos peruanos que acreditaram no projeto de Humala.

O “efeito saturação”

El Comercio não se deu por vencido nem quando o escrutínio atingiu um ponto sem retorno. No dia 7/6 publicou a seguinte manchete: “Incerteza por falta de sinais claros”. Em um dos títulos secundários admitia que “o volume de negociações foi baixo”, mas assinalava que “a Bolsa de Valores de Lima teve a pior queda da história, com 12,45%”. Acrescentava que “especialistas sustentam que devem ser definidas com rapidez as novas cabeças do Ministério de Economia e Finanças e do Banco Central” e, em um editorial, indicava que “o novo presidente deve dar uma mensagem tranquilizadora aos cidadãos, ao mercado e aos setores econômicos”. Puro terrorismo financeiro.

No mesmo dia, o jornal La República escolheu outro título: “Ollanta dá o primeiro passo”. Informava sobre a designação de uma comissão de transferência do poder desde o triunfo até a posse, dia 28 de julho, sob o comando da vice-presidenta eleita Marisol Espinoza. La República publicou uma interessante coluna do historiador Nelson Marique, “Balanço de feridos”. “As dúvidas em torno do que um governo de Humala poderia representar foram minimizadas pela perspectiva de contribuir para o retorno do fujimorismo”, escreveu Manrique. “Não conheço nenhum outro momento da história peruana em que tenha se produzido uma convergência tão ampla e comprometida de escritores, cientistas políticos, cineastas, sociólogos, jornalistas, historiadores, linguistas, educadores etc., em torno de uma causa comum resumível em duas palavras: decência e dignidade.” Para Manrique, esse “aval ético” envolve “a responsabilidade de exercer vigilância sobre os atos do novo governo”.

É aguda a análise sobre a contribuição do grupo El Comercio para o triunfo de Humala. “Desempenhou também um papel importante o `efeito saturação´ provocado pela campanha de demolição empreendida pela maioria dos meios de comunicação contra Ollanta Humala. Quando, em uma campanha propagandista, se baixa de um certo ponto, ela deixa de ser efetiva e acaba produzindo o efeito contrário ao desejado. O bombardeio midiático ultrapassou amplamente esse limite e suas mensagens não só deixaram de funcionar, como alimentaram o ceticismo dos espectadores em relação ao desempenho do grosso da imprensa, rádio e TV. O desempenho do grupo El Comercio merece uma menção especial, pois fez um esforço homérico para destruir sua própria credibilidade.”

Simplicidade didática

Segundo Marinque, El Comercio passou tanto, mas tanto, do limite que, ao final, se converteu “em uma excelente recordação de como foram os tempos de Fujimori”.

Lula governou oito anos com a oposição ferrenha do jornal Folha de S.Paulo, da revista Veja e da Rede Globo. Deixou o poder no dia 1° de janeiro deste ano com uma popularidade superior a 80%. A melhoria real da vida dos brasileiros, mais sua percepção subjetiva de uma melhora – Lula sempre fala da recuperação da autoestima e esse foi seu elogio a Néstor Kirchner no velório do ex-presidente –, atuaram como um dique de contenção contra o qual se esborrachou o bombardeio da grande mídia do Brasil.

Dilma ganhou no segundo turno apesar de as elites políticas brasileiras terem chegado a demonizá-la porque havia declarado seu apoio à descriminalização do aborto. Ganhou em virtude do peso da realidade, sintetizado na incorporação de 36 milhões de brasileiros ao mercado, pelo poder de comunicação do próprio Lula e pelo boca-a-boca. A televisão pública recém começa e experiências baseadas em valores de justiça social, como a revista CartaCapital ou o site Carta Maior, são importantes, mas não massivas. A aposta atual do ministro de Comunicações de Dilma, Paulo Bernardo, esposo da nova chefe da Casa Civil, Gleise Hoffmann, é ampliar o programa de banda larga e garantir um serviço de um mega para 40 milhões de brasileiro a um preço de um décimo do salário mínimo mensal, de hoje até 2014. De acordo com dados do Sindicato Nacional de Empresas de Telefonia e de Serviço Móvel Celular e Pessoal, para garantir que 74% da população esteja coberta até 2020, o Estado e a iniciativa privada devem investir cerca de 130 bilhões de dólares.

Com uma plataforma digital acessível, podem se plasmar formas de diversidade como as que propõe a Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual na Argentina, ou podem se expressar, a partir da sociedade civil e da articulação política, forças como as que levaram à vitória da frente Ganha Peru. Mesmo sem uma plataforma digital barata e massiva, os simpatizantes de Ganha Peru, em lugar de teorizar sobre as redes sociais ou a análise do discurso – matéria de especialistas – decidiram usar toda a web. Um desses simpatizantes escreveu:

“Se você possui uma conta de correio, blog, website, ou participa de redes sociais (Facebook, Twitter etc.), urge assumir a responsabilidade de difundir para teus contatos duas ideias chave para enfrentar a grande mídia e evitar que te imponham o voto. A primeira, que as propostas de mudança provêm da frente Ganha Peru e de seu candidato Ollanta Humala. A segunda ideia é que deve lembrar teus destinatários dos crimes cometidos pelos Fujimori, como La Cantuta, Barrios Altos, Pedro Huilca.”

A simplicidade didática, no Peru, foi parte de uma articulação política em favor de um objetivo. Ocorre o mesmo quando um fato negativo lança uma luz de alerta. Antonio Palocci, o ex-chefe da Casa Civil, não renunciou porque a informação sobre seu enriquecimento saiu na Folha de S.Paulo. Deixou o cargo porque não pode explicar nem sua riqueza súbita nem dizer quais eram os clientes de sua empresa de consultoria antes de assumir como braço direito de Dilma. Para além das questões jurídicas, o PT entendeu que se Pallocci permanecesse no Planalto acabaria prejudicando a presidenta e o governo inteiro. Com Lula em 2005 e 2006, o PT aprendeu que os escândalos não devem crescer porque desgastam a base de sustentação do presidente e que, em troca, essa base aumenta quando as políticas de maior justiça que dão identidade a um projeto popular são implementadas sem ruídos de forma e de fundo. E, claro, sem medo do bombardeio midiático.

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[Martín Granovsky é jornalista do Página/12, de de Buenos Aires]