Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Como salvar a vida na Terra?

Começo este artigo com quatro argumentos óbvios.

O primeiro é: pensamento ou paradigma algum é neutro ou está fora das relações de poder como se pudesse valer por ele mesmo, sem responder a interesses econômicos, simbólicos desse ou daquele grupo social.

O segundo é: mesmo não sendo neutro, mesmo estando vinculado a interesses diversos, de grupos sociais, logo, de grupos de poder, existem pensamentos que são potencialmente mais emancipadores que outros.

O terceiro é: porque vivemos numa civilização em que, tal como as precedentes, um grupo restrito de humanos se apropria da riqueza comum, pensamentos conservadores, independente da época, são aqueles que, de uma forma ou de outra, não apenas não questionam o status quo de sua época, mas, mais que isso, foram produzidos, de forma consciente ou não, para justificar os privilégios de classe dos grupos socialmente opressores. Por sua vez, pensamentos potencialmente revolucionários, igualmente independente da época, são aqueles que não apenas questionam – ou podem ser usados para questionar – o status quo de sua época, mas também têm relação direita com os grupos dominados, que os produzem – ou deles se apropriam – a fim de procurar, com inteligência e ação coletivas, construir uma sociedade mais justa.

“Nada existe de permanente, a não ser a mudança”

O quarto é: um pensamento ou paradigma revolucionário, produzido numa dada época, pode ser retomado numa outra, num contexto de relações desfavoráveis para as forças sociais emancipadoras, tal que passa a ser usado de forma absolutamente reacionária, embora nos seja apresentado como emancipador. Um pensamento ou paradigma reacionário produzido numa dada época pode ser reescrito numa outra época de forma singularmente revolucionária e original.

Consideremos, a propósito, o filósofo pré-socrático Parmênides. Nitidamente, seu pensamento é reacionário, pela simples razão de ter produzido um conjunto de premissas baseadas no argumento – ou premissa-mor – de que o movimento não existe. Ao preconizar que o movimento é uma ilusão, Parmênides demonstrou-se reacionário porque procurava fixar, para os seus contemporâneos, a sensação ou a visão de que a ordem hierárquica de seu entorno social era natural, inamovível, como é possível deduzir de sua mais conhecida sentença: “O ser é; o não-ser, não”, frase que perfeitamente pode ser traduzida como: “Quem impõe seu próprio ser, pelo privilégio de classe – e pela força – sobre os demais seres é o ser por excelência. Por outro lado, aquele que é explorado, para garantir o privilégio do ser, de antemão continuará não sendo, pois o movimento não existe, de modo que é absolutamente inútil fazer qualquer coisa para perturbar o ser imutável, com seu ser que é, em detrimento do não-ser.”

Contrapondo-se a Parmênides, consideremos, por sua vez, outro filósofo pré-socrático: Heráclito. Diferentemente de Parmênides, o pensamento de Heráclito tende a ser revolucionário, pois defende que o movimento não apenas está em tudo como também faz com que tudo esteja em ininterrupta transformação, razão pela qual, para Heráclito, “nada existe de permanente, a não ser a mudança”.

A serviço de privilégios

Como se vê, o pensamento de Heráclito detém um potencial revolucionário fabuloso porque, através dele, é possível deduzir que privilégio de classe algum é fixo ou se justifica tendo em vista qualquer verdade pré-estabelecida, pois tudo muda e deve mudar, o que não é possível numa situação de privilégio hierárquico, de uma classe em detrimento de outras porque o privilégio pressupõe a sua conservação fora do movimento.

Heráclito foi um pensador revolucionário porque seu pensamento, baseado na mudança e na impermanência, pode ser perfeitamente apropriado por grupos sociais oprimidos de tal sorte a se conscientizarem de que a situação deles, como oprimidos, também não é fixa, uma vez que nada é fixo. O oprimido, movimentando-se contra a sua fixidez social de oprimido, pode desoprimir-se, desde que entenda com clareza que não pode fixar privilégio exclusivo algum, pois, se assim o fizer, constituirá inevitavelmente um novo horizonte reacionário, através do qual tenderá a defender a permanência de seus privilégios, negando novos movimentos revolucionários, o que me remete a um quinto argumento.

Se uma mesma água não banha duas vezes o mesmo rio, de vez que sempre é outra, ao fluir, como defendia Heráclito, é porque o movimento engendra a novidade de tudo em tudo, de tal sorte que tudo que era já não é mais, de vez que sofreu mudanças provocadas por movimentos diversos, do tempo sobre os corpos, motivo pelo qual o movimento cria o tempo, que cria a morte, no movimento da consciência humana.

É aí precisamente que entra o capitalismo, pois constitui um sistema social que produziu um teatro do movimento, como a sugerir, com esse teatro paradoxal, que ele mesmo, o capitalismo, é movimento e, portanto, não se constitui como um sistema de privilégios hierárquicos de classe, mas de oportunidades conquistadas precisamente pelo movimento em busca do lucro. O capitalismo pôs o movimento a serviço de privilégios, do fixo, da permanência escandalosa da concentração de renda para alguns poucos, enquanto a maioria dos seres é condenada a não-ser; a movimentar-se para produzir o privilégio de poucos, de sorte que o conjunto de seus movimentos é ao mesmo tempo o conjunto de sua permanência como classe social oprimida.

Esclarecimento que teatraliza o movimento

É precisamente no momento em que o capitalismo doma para valer o movimento do planeta quase todo, que surge a indústria cultural. Esta, assim, constitui a tecnologia por excelência de dominação capitalista do movimento, pondo-a a serviço do lucro, que necessita, sem cessar, de movimento, isto é, de trabalho dominado e de capital dominante, para fixar privilégios no colo de poucos.

Em diálogo com Dialética do Esclarecimento, livro escrito conjuntamente por Adorno e Horkheimer, esclarecimento é o nome da presença dominante do homem na Terra. O argumento dos dois mencionados filósofos da conhecida Escola de Frankfurt é o seguinte: esclarecimento é saber utilizado para dominar, quando usado para a manutenção de privilégios ou da permanência de interesses de alguns a partir da desgraça de muitos.

Estar esclarecido, para Adorno e Horkheimer, significa estar de posse de conhecimentos – tecnológicos, filosóficos, simbólicos, estéticos, científicos, mitológicos, narrativos – que servem antes de tudo para dominar e submeter, tal que o esclarecido, valendo a redundância, esclarece-se, obtém conhecimentos, para, antes de tudo, dominar. O esclarecido é o ser que se esclarece para eleger, via esclarecimento, o lugar do ser e do não-ser: a condenação ao movimento, sob a forma de trabalho explorado, para fixar o domínio eterno do ser.

A indústria cultural, no capitalismo contemporâneo, é o lugar por excelência do esclarecimento e sua diferença, em relação a outras formas deesclarecimento, está relacionada com a constatação de que ela constitui uma tecnologia de dominação sobre o tempo – logo sobre a mudança, sobre movimento. É precisamente, portanto, através da indústria cultural, que o pensamento de Heráclito deixa de potenciar usos revolucionários para estar a serviço de objetivos absolutamente reacionários. E a razão disso é muito simples: a indústria cultural é um esclarecimento que teatraliza o movimento, domesticando-o e descodificando-o, posto que, através dela, o movimento deixa de estar implicado com a mudança e passa a pactuar inevitavelmente com a permanência.

O rosto do poder

Mas como a indústria cultural pode domar o movimento da vida, fazendo permanecer, sobre a Terra, a morte? Através do efeito de teatro que ela produz. Efeito teatro é o nome que dou à imitação da vida, logo à imitação do movimento. A indústria cultural, com seus filmes, músicas, teatros, novelas, jornais, livros, internet, imita o movimento da vida e o faz congelando a vida num sistema imutável: o capitalismo, como se este contivesse em si todos os movimentos ou fosse a consequência lógica, natural, inevitável, de todos os movimentos do mundo, inclusive aqueles que supostamente questionam o capitalismo, de vez que também eles podem se tornar movimento codificado, teatralizado.

Heráclito, com a indústria cultural, poderia ser assim parodiado: “A permanência é a mudança”, a do sistema capitalista. É isso que faz a indústria cultural, teatralizar o movimento da vida, através, por exemplo, de notícias sobre acontecimentos diversos, tal que o capitalismo sempre permanece imutável, de vez que o movimento da edição das notícias mantém a imutabilidade do sistema capitalista, como a verdade, seja negando tudo que procura por em causa o sistema capitalista, seja editando o sem fim de notícias que teatralize o movimento da permanência do capitalismo.

Diante dessa nova forma de esclarecimento, como o da indústria cultural, que teatraliza o movimento da permanência da dominação capitalista, singular é o pensamento do filósofo lituano Emmanuel Levinas (1906-1995), por ter transformado o rosto humano no exemplo cabal de que o movimento não existe. Num certo sentido, Levinas retoma o pensamento de Parmênides, reescrevendo-o de forma revolucionária, pois, para ele, o rosto precede tudo, as leis, o lucro, a propriedade privada, a guerra, a ditadura, a democracia, a religião; o movimento da exploração, que é antes de tudo o da morte do rosto.

Para Levinas, o rosto de quem está em situação de vulnerabilidade precede, em importância, o rosto de quem está protegido, seja pelo poder econômico, simbólico, epistemológico, bélico; seja pelo poder que for: o rosto do não poder precede o rosto do poder. Como é possível notar, Levinas retoma a importância de um pensamento de base hierárquica, a fim de argumentar, por exemplo, que o rosto da mulher precede hierarquicamente o do homem; o da infância precede o do adulto; o do negro precede o do branco e, antes de tudo, o rosto de quem corre o risco de morrer, o rosto ameaçado de morte, precede todos os outros rostos, hierarquicamente, motivo pelo qual o rosto do oprimido precede o rosto do opressor.

As nossas urgências

O filósofo lituano Emanuel Levinas fez, assim, do rosto o emblema de seu singular pensamento porque entendia que o rosto – dos seres não humanos também – contém em si o clamor do movimento do tempo sobre a vida. O rosto indicia que morremos, que somos seres mortais. É por isso que o rosto deve preceder a tudo, a toda razão de Estado, de dinheiro; a toda jurisprudência, porque a defesa de sua permanência, da vida no rosto, nada mais é que a defesa igual de toda vida, sobretudo se esse rosto for o do pobre, do vulnerável, do humilhado porque a morte destes é igualmente a morte de todos nós. Cada rosto que matamos ou deixamos morrer, em nome seja lá do que for, constitui a abertura sem fim do movimento do tempo da morte sobre o tempo da vida.

Como teatro global do movimento da vida, a indústria cultural fez do movimento desta, da vida, um movimento, na verdade, da e para a morte, através de dois dispositivos: 1) a sujeição do rosto do outro, do rosto da vida, ao rosto abstrato do dinheiro, do lucro. Na indústria cultural, só merece viver o rosto que dá lucro, os demais são considerados inferiores, ultrapassados; 2) o segundo dispositivo é o de congelar o movimento do tempo, condenando-nos a um eterno presente em movimento circular em torno de si mesmo, de tal sorte que tudo se torna tempo do lucro, isto é, do capitalismo.

Esse segundo dispositivo é o principal estratagema do esclarecimento da indústria cultural, pois, através dele, o movimento é valorizado desde que seja o do ser capitalista, como o único movimento credível, possível, existente. Com isso, a indústria cultural doma e toma para si o pensamento ou paradigma de Heráclito, tudo muda, para pô-lo a serviço de um pensamento ou paradigma de tipo Parmênides: tudo muda para permanecer o mesmo; tudo muda para concentrar capital.

As forças vivas do mundo contemporâneo, cujo movimento não aceita ser tomado pelo esclarecimento da indústria cultural – e por esclarecimento algum – precisam, mais do que nunca, ter clareza sobre a situação atual da humanidade, principalmente porque, desde sempre, fomos preparados, em nossos movimentos libertários, a lutar contra toda forma de hierarquia e de permanência.

Ter clareza, assim, significa entender que estamos numa situação planetária em que o próprio movimento, inclusive o libertário, foi apreendido e domado pela indústria cultural, assim como a anarquia. Ter clareza, assim, é compreender que mais do que nunca é preciso que os movimentos sociais do mundo incorporem a hierarquia e a permanência, para continuarem sendo revolucionários e antes de tudo para continuarem sendo força viva de transformação social, de construção de justiça.

Certamente, o pensamento de Levinas tem muito a nos o ensinar, sob o ponto de vista de que hierarquia e de que permanência estamos falando: a da vida sobre a morte, a do rosto do outro sobre o meu rosto, a do distante sobre o próximo; do estranho sobre o conhecido.

Não resta dúvida de que, nessa situação, o rosto que tem precedência sobre todos os outros é o rosto de quem está morrendo pela arma do ser capitalista ou pela arma do ser imperialista. Eis porque todo nosso movimento libertário deve direcionar-se para proteger o rosto do iraquiano, do palestino, do líbio, do afegão, da fome.

Colocar a urgência desses rostos na frente de nossas urgências é a única saída, hoje, para salvar a vida na Terra.

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[Luís Eustáquio Soaresé poeta, escritor, ensaísta e professor da Universidade Federal do Espírito Santo]