Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O primado da superficialidade

Faz parte do ideal iluminista a compreensão de que a imprensa serve, acima de tudo, para prestar um serviço público e este não é outro que o de dizer a verdade à população. Atuando assim, a imprensa favorece a construção de uma consciência crítica da realidade. Até aí, tudo bem. O problema é que este entendimento vem, há muito, sendo desafiado pelo concepção capitalista de que a notícia é um produto de consumo como outro qualquer.

E se é produto de consumo é natural que obedeça a lógica das fases de produção, linha de montagem etc. O mercado, bem o sabemos, obedece a leis, regulamentos, normas. E é exigente: quer tudo e a tempo. É aqui que mora o perigo, pois vivemos sob o signo da velocidade. Tudo precisa ser feito de imediato e mesmo a notícia necessita ser atualizada a cada instante, algo concebível no mundo virtual. Mas não é de hoje que estamos às voltas com notícias mal-apuradas, notícias que não preenchem requisitos mínimos de qualidade e que – passou a ser corriqueiro – parecem inteiramente divorciadas da verdade: na falta atualizações, estas passam a ser inventadas.

Lições de descompromisso

A tentação de passar ao largo de qualquer forma de aprofundamento, não importa quão interessante e convidativo seja o assunto, parece ser a regra geral. Por exemplo, li esta notícia em jornal de grande circulação nacional:

“A saga de Harry Potter é uma as mais lucrativas da história. Os sete livros venderam mais de 400 milhões de exemplares em 69 línguas e os sete filmes lançados até o momento arrecadaram mais 6,6 bilhões de dólares em todo o mundo.”

Nessas quarenta e três palavras entre aspas temos boa quantidade de informação. Mas o fato é que a notícia fica apenas nesse enunciado de “encher os olhos” e nada, absolutamente nada, de análise. Era de se esperar que se convidasse ao menos algum especialista em literatura para refletir sobre tão impressionantes números relacionados com as aventuras de Harry Potter, o pequeno órfão aprendiz de bruxo e mina de ouro da escritora britânica J. K. Rowling. E também alguns especialistas no mercado editorial para analisar os pilares comerciais que sustentam o fenômeno Harry Potter. Professores do ensino fundamental também poderiam compartilhar percepções sobre Harry Potter e a criação do hábito de leitura. Mas nada disso é feito porque o império da superficialidade parece se impor com imbatível superioridade.

Uma coisa é entender que a objetividade não existe e outra, bem diferente, é deixar de buscá-la. E a busca da objetividade ajuda a revestir de credibilidade o texto jornalístico.

Também passou a ser comum encontrar, principalmente no jornalismo virtual, notícias que nem mereciam ser notícias devido à sua completa falta de importância relevância. É quando encontramos em um dos principais portais noticiosos da internet no Brasil chamadas como:

** “Sabia que as depiladoras brasileiras mudaram a vida de Gwyneth Poltrow?”

** “Princesa Anne multada por ataque de cão”

A pergunta que o leitor deve fazer é: “E eu com isso?” Mas esses dois pequenos casos, apenas a título de ilustração, demonstram o descompromisso com o jornalismo e também uma certa queda pelo bizarro, pelo exótico, pelo raro. Termina que não chegam a ser nem uma coisa nem outra, mas apenas e tão somente um certo tipo de miopia… jornalística.

Luta hipotética

O jornalismo instantâneo é geralmente recheado por temas desimportantes, quando não por frivolidades em pencas. É o artificialismo em transe. Neste contexto, não deveria causar espanto ver o nível cada vez mais raso que o jornalismo vem assumindo em sua roupagem virtual. Não tardará a que a tradição do bom jornalismo (fundamentado, pesquisado) ceda lugar ao mau jornalismo (instantâneo, frívolo): a preocupação maior será com a manchete e não com o conteúdo da notícia.

Como é mais comum que doença contagie e não saúde, vemos proliferar apenas os defeitos de um tipo incompleto de jornalismo:

** As fontes não precisam gozar de boa reputação;

** As imagens deixam de representar unicamente a realidade, o factual, e nestes tempos de farta manipulação digital já são bem assimiladas e aceitas intervenções visando um “melhor enquadramento”;

** Ao momento ainda são repudiados aqueles programas de computador usados para melhorar a aparência dos personagens da notícia;

** Na busca de informações para uma reportagem parece já ser admissível o uso de disfarces ou meios similares para ocultar a profissão de jornalista;

** Ainda não sabemos se existe algum valor aceitável para presentes, por parte de suas fontes, oferecidos a jornalista;

Como vemos, há uma enormidade de temas a serem abordados com maior profundidade e que dizem respeito à qualidade do jornalismo que podemos oferecer à sociedade, mas a tendência atual continua sendo a de apostar todas as fichas na luta contra um hipotético cerceamento da liberdade de expressão por parte do Estado. É como se decidíssemos lutar pelo imaginário – que nos rende mais frutos – em vez de lutar pelo real, que nos causa apenas aborrecimentos.

Brinquemos, então, de fazer jornalismo.

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[Washington Araújo é mestre em Comunicação pela UnB e escritor; criou o blog Cidadão do Mundo; seu twitter]