No dia 2 de agosto, Gilberto Leifert, presidente do Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar), um órgão da sociedade financiado e composto por membros vinculados à indústria da publicidade, foi entrevistado pelo jornal Folha de S.Paulo.
Nesta entrevista, pronunciou informações contraditórias e carentes de embasamento. Iniciando com o bordão ‘publicidade de produto lícito não faz mal à saúde’, desenvolveu o argumento de que o simples estabelecimento legal da licitude ou não de um produto garante que este produto não faça mal à saúde dos consumidores. Ora, se assim o fosse, a própria Constituição Federal, emanada do povo e do Estado, não determinaria, em seu artigo 221, parágrafo 4°, que determinados produtos, como tabaco, álcool, agrotóxicos e medicamentos, embora legais, fossem passíveis de restrição em sua publicidade, apontando, inclusive, a presença de malefícios em seu consumo.
Expõe, ainda, que as iniciativas da Anvisa seriam autoritárias e inconstitucionais por ferirem uma suposta garantia constitucional: a ‘liberdade de expressão comercial’. Destaca-se, entretanto, que por mais que exista essa chamada ‘liberdade de expressão comercial’ – algo na doutrina dos direitos fundamentais e/ou direitos humanos essencialmente questionável – , ela não estaria livre de regulação por parte do poder público. Diferentemente dos verdadeiros direitos fundamentais e/ou direitos humanos, a possibilidade de veicular propaganda e publicidade de um produto ou serviço (comunicação comercial) advém da liberdade econômica, e não da liberdade de expressão, direitos contidos em capítulos diferentes na Constituição Federal e que possuem tratamento e proteção igualmente diferentes.
Influência nos hábitos de consumo
Para deslegitimar as iniciativas da Anvisa de regulamentação, o presidente do Conar explora a ideia de que essas ações não fazem parte de uma demanda social, não encontrando respaldo na sociedade. É exatamente o contrário que demonstram fatos como a aprovação de dezenas de propostas que visam à regulamentação da publicidade na Confecom (Conferência Nacional de Comunicação), a qual contou com a intensa participação de diferentes setores sociais. Ainda, como demanda da sociedade internacional e após análise de todos os fatos comprovados, a OMS – Organização Mundial da Saúde, no mês de maio deste ano instituiu recomendação aos estados partes que estimulassem a regulamentação de publicidades de alimentos e bebidas com alto teor de açúcar, gorduras e sais, o que fez a Anvisa por meio da última Resolução n° 24. Vale lembrar que o próprio Conselho Nacional de Saúde, composto por membros legitimados da sociedade civil e do governo, possui posição clara sobre a necessidade de regulamentar a publicidade destes produtos.
Certamente, a autoridade sanitária possui ainda um papel importantíssimo para o combate a outras práticas nocivas que atentam contra a saúde do cidadão brasileiro. Entretanto, não há como negar a influência notória da publicidade para criação de hábitos de consumo. Se assim não o fosse, tantos países amplamente democráticos, como Inglaterra e até mesmo EUA, não estariam regulamentando tal assunto, baseados em inúmeras pesquisas que comprovam a relação da publicidade com problemas como obesidade infantil, alcoolismo precoce e violência, entre outros problemas sociais que trazem grandes gastos diretos e indiretos para o Estado.
Um importante papel para controvérsias
Dessa forma, a regulação da publicidade não é só uma necessária ação constitucional do Estado para proteger a saúde dos brasileiros, mas também eficaz, como foi demonstrado no caso do cigarro. Contrariamente aos argumentos apresentados na entrevista do presidente do Conar ao jornal Folha de S.Paulo, o Inca – Instituto Nacional do Câncer divulgou em 2009 pesquisa que demonstrou o impacto positivo na diminuição de novos fumantes pela proibição da publicidade de cigarro. Vale lembrar que o Conar, mesmo com toda a discussão envolvendo os males causados pelo cigarro, colocou-se contrário à regulamentação estatal, mesmo sendo ela vinda do Congresso.
O que se nota é que o Conar quer obstaculizar qualquer tipo de iniciativa do Poder Público – vinda ela do Executivo, do Legislativo ou do Judiciário –, que tente regulamentar a publicidade: foi assim com o cigarro, com os medicamentos e agora com os alimentos não-saudáveis.
Realmente, o Conar, em seus mais de 30 anos de existência, desempenhou um importante papel para controvérsias, especificamente as geradas entre anunciantes, mas ainda é insuficiente: possui interesses parciais; não abrange todo o Brasil; não possui uniformidade de recomendações; e o principal, não possui o poder coercitivo para sancionar os abusos publicitários.
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Assessor jurídico do Projeto Criança e Consumo, do Instituto Alana, e pesquisador do Grupo de Pesquisa Democracia, Justiça e Direitos Humanos – Estudos de Teoria Crítica, do Núcleo de Estudos da Violência da USP