Vou tentar ir um pouco mais além nessa discussão sobre a transposição do São Francisco. Começo dizendo que o governo já tinha em mente esse projeto desde a campanha eleitoral, não é verdade que esteja sendo apressado e que nem esteja debatido. A mídia é que só se interessou pelo projeto, com raras exceções, após a greve do bispo. É aquela coisa, se alguém ficou contra o governo acendem-se os holofotes. O episódio acaba valendo para repor o debate em sua verdadeira dimensão. Nesse sentido, temos de agradecer ao bispo por sua obstinação. Vamos aos pontos:
Grande consenso
**
Primeiro, ouço e leio comentários como se o projeto do São Francisco fosse somente a transposição – não é. O atual projeto é qualitativamente superior a anteriores, tem viabilidade técnica, por isso está gerando debates, mas não é consensual do ponto de vista dos impactos socioambientais. O programa de saneamento básico é importantíssimo para o rio. Há inclusive um programa de regularização fundiária com assentamentos previstos para agricultores familiares ao longo das margens (respeitada a legislação ambiental). A idéia é que sejam desenvolvidas atividades econômicas sustentáveis para beneficiar um maior números de nordestinos.**
Segundo, outro problema é atribuir exclusivamente ao governo Lula os problemas que o rio tem e que porventura venha a ter. Acho insensato e injusto tal posicionamento. A ‘expropriação’ comandada pelas oligarquias nordestinas é secular, não acaba de uma hora para outra, e o projeto do governo é, nesse sentido, mais inclusivo do que o que já existe lá, por exemplo, no pólo de fruticultura de Petrolina e imediações. Sou a favor de gerar projetos econômicos de caráter inclusivo e sustentável para que não sejam gerados enclaves, projetos privados altamente rentáveis ao lado de bolsões de miséria. Achar que não se deva prever atividades econômicas é ingenuidade, porque elas já existem e vão surgir independentemente da ação do Estado. A questão é o caráter das atividades econômicas que devem ser incentivadas. É preciso planejar sustentavelmente sua ocupação econômica para que erros não se repitam.**
Terceiro, não é totalmente correto afirmar que o projeto favorece as oligarquias. Isso não é uma discussão panfletária. Na verdade, o projeto divide as oligarquias porque elas têm interesses próprios na continuidade de projetos que muitas vezes exaurem o rio, têm impactos locais que não são vistos e nem questionados, garantindo o controle do poder local e a concentração da riqueza regional. As oligarquias não têm visão de país e surpreenderiam se tivessem. Elas estão capturando o movimento de insatisfação para regatear depois com o governo federal, caso o projeto fracasse.**
Quarto, acho que há um grande consenso que pode nos colocar como defensores do projeto – a revitalização. Temos de nos concentrar mais nesse aspecto e ver se o que está sendo proposto é suficiente e estipular metas ambientais de recuperação do rio para deixar claro aonde se quer e se pode chegar e quais os obstáculos à sua realização.Poder místico
**
Quinto, a transposição envolve vários níveis de controvérsias: na sua engenharia, na concepção, nos objetivos, nos reais benefícios e impactos previstos. O ideal é realizar um referendo naqueles estados receptores e doadores da Bacia do São Francisco. Assim, o ônus político de sua realização ou não seria dividido com a sociedade, além de ser mais democrático. Discutir sua necessidade é importante porque esse ponto (a transposição) está sendo utilizado para inviabilizar o projeto, que pela extensão reordena a ocupação espacial.**
Sexto, o que não se pode é achar que sem o projeto o rio será melhor do que é hoje porque não vai ser, seu destino já é o exaurimento. Tem gente que entende muito dos projetos de transposição, mas se esquece de entender do histórico processo de ocupação do rio. É essa noção que vai impedir que não sejamos reincidentes. Temos de entender o projeto como uma oportunidade para recuperar/revitalizar o São Francisco de fato. Pressionar e cobrar por isso. Ser simplesmente contra o projeto em sua totalidade ajuda a fazer o jogo de parte da oligarquia nordestina, já que boa parte dela que é contra a transposição não por qualquer preocupação ambiental, apenas quer dar continuidade a seus próprios projetos no entorno do São Francisco. O bispo pode se prejudicar se continuar bebendo a água do rio, e não por causa da greve. Ninguém pode pretender que sua autoridade pessoal seja maior que esse debate. Acredito no diálogo.O Rio São Francisco exerce um poder místico sobre certas pessoas, que se arvoram à condição de seus defensores incontestes e o fazem apaixonadamente, como amantes contemplativos. Tudo isso é legítimo, mas precisamos objetivar o debate. Portanto, é preciso ser objetivo em relação à defesa do projeto, reforçando o que mais se quer dele, a revitalização do rio, e se da forma que está prevista será realmente suficiente/eficaz. A transposição deve ser destacada e debatida, a meu ver, em referendo regional.
******
Economista, mestre em Desenvolvimento Econômico, doutorando em Economia Aplicada, Instituto de Economia da Unicamp, Campinas, SP