Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Imprensa nanica em erupção

Dia 24 deste agosto fez 56 anos que o então presidente Getúlio Vargas se matou com um tiro no peito. Gaúcho de São Borja, foi lá que o jornalista Samuel Wainer foi buscá-lo, depois que as elites (sim, a zelite, sempre e de novo!) o tinham apeado do poder em 1945, para ser o candidato vitorioso das eleições de 1950, chegar ao poder como o ‘pai dos pobres’ e tentar concluir a sua obra iniciada na Revolução de 1930, prosseguida com o golpe de 1937, interrompida de novo em 1945, e retomada em 1951, quando o suicídio acabou, enfim, com o projeto, na manhã de 24 de agosto de 1954.

Pois em tempos da ‘mãe dos pobres’ Dilma Rousseff, mineira mas de fortes vinculações com os gaúchos, é do Rio Grande do Sul que vem outra novidade: o jornal Tempo 21, publicado em Porto Alegre (RS), com tiragem de apenas cinco mil exemplares. É uma publicação valente, ousada e desconcertante. É um vulcão! E, tido por extinto com outros nomes, voltou a entrar em erupção.

Pontifica ali a autoridade intelectual do escritor e professor José Hildebrando Dacanal, de 64 anos, mestre em desarrumar a cabeça de todos, inconformado com o statu quo, qualquer que seja ele. Foi figura de destaque nas lutas que levaram à derrubada da ditadura militar, insurgiu-se contra o PT, que governou Porto Alegre e o Rio Grande do Sul em experiências pioneiras que serviram depois de modelo em outros municípios e estados governados pelo mesmo partido, e faz a delícia de quem aprecia um texto escrito com inteira liberdade.

Fortuna era uma deusa

É difícil encontrar em grandes e médios jornais a qualidade dos artigos desse glorioso exemplar da imprensa nanica, expressão criada pelo jornalista e escritor João Antônio na década de 1970 para designar publicações como O Pasquim, Extra, Verve etc., que faziam as delícias de quem procurasse textos e autores sem rabos presos.

Se fosse editado no Rio de Janeiro ou em São Paulo, Tempo 21 certamente explodiria no Brasil, melhoraria a qualidade gráfica e traria contribuições presas na garganta de muitos intelectuais que têm o que dizer, sabem como fazê-lo, mas estão confinados à internet, a blogues pouco visitados ou ao ineditismo mortífero. Soa estranho dizer ‘confinados à internet’, mas é isso mesmo: como a banda larga é de poucos, poucos leem jornais e revistas na internet.

O número de julho de 2010 traz no editorial, ‘A guerrilheira e o faxineiro’, a lembrança do brocardo latino Fortuna imperatrix mundi (o acaso é imperador do mundo). Imperator está no feminino imperatrix porque o acaso é feminino em latim: fortuna. É do mesmo étimo das palavras forte e fortuito, ligadas a um verbo tremendamente irregular: fero, fers, tuli, latum, ferre. Quem quer um texto mais fácil, procure outro artigo. Não há outro modo de explicar, o latim é língua complexa e difícil, mas é a mãe do português e, como todos sabem, mãe não é fácil de compreender, e pode e deve ser amada. Os antigos romanos davam tanta importância à sorte, ao azar, ao acaso, personificados em fortuna, que Fortuna era também uma das deusas do panteão romano.

Lembranças insólitas

Continua o editorial: ‘Muitas coisas acontecem sem serem previstas. E outras, anunciadas, jamais se realizam.’ As citações servem para conduzir o leitor a refletir sobre a estrela do momento: Dilma Rousseff. Ela ‘sobreviveu para tornar-se inesperada princesa. E talvez rainha, ungida não por um pobre faxineiro, mas – ainda bem! – por um competente metalúrgico… Ó céus, ó protetores numes celestiais! Como os gregos e os romanos de tudo sabiam!’ O ‘faxineiro’, no caso, é o escritor e professor José Hildebrando Dacanal, doutor em Letras pela UFRGS, que a si mesmo se intitula ‘faxineiro’.

Há também alguns antigos artigos sabiamente recuperados, como ‘Uma noite de horror com Fernando Henrique Cardoso’. Em meados da década de 1970, ele esteve num debate na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul e soltou esta: ‘É preciso deixar claro que nós estamos aqui para discutir algumas ideias, e não para discutir como chegar ao poder.’ Ao que Dacanal, na época, com 27 anos, perguntou: ‘Mas, professor, se não se pensa em chegar ao poder, o que estamos fazendo aqui?’ Vinte e dois anos depois daquela noite gelada dos 70, FHC tomava posse como presidente da República.

José Hildebrando Dacanal narra também seu convívio com Dilma Rousseff, de quem foi colega numa disciplina na UFRGS. E guarda lembranças ainda mais insólitas, como as confidências ouvidas de um colombiano alcoolizado, que voltara de um treinamento na Bulgária. Seu nome: Manuel Marulanda. Isto mesmo, Tiro Fijo, fundador das Farc.

Um fato importantíssimo

O jornal traz ainda uma resenha muito irreverente sobre o livro A Mosca Azul, de Frei Betto, em que elogia o estilo brilhante do autor, mas vitupera suas ilusões com o governo, e um belo ensaio sobre um dos maiores romancistas brasileiros vivos e certamente o mais injustiçado: o mineiro Benito Barreto, autor da saga Os Guaianãs, sobre o passado que Minas esqueceu. Ao contrário dos gaúchos, que enaltecem seu passado glorioso, os mineiros escondem o deles.

E a mídia esconde os dois. Mas sobre isso não há novidade. É assim em todos os campos. No do futebol também. Os grandes jornais só descobriram que havia um campeão das Américas no Rio Grande do Sul depois que o Internacional, que já se classificara para a finalíssima do Mundial Interclubes, venceu o mexicano Chivas na quarta-feira da semana passada.

De resto, o de sempre: não há um único jornal nacional no Brasil. Todos são paroquiais. Estadão e Folha nem mais paulistas são, pois esqueceram o interior, tornando-se apenas paulistanos. E O Globo e o Extra são cariocas. Tampouco são fluminenses. Assim, quem quiser se informar ou ler intérpretes do Brasil, procure os médios, os pequenos e os nanicos, que estão voltando com força. Esta volta é um fato importantíssimo na vida da imprensa brasileira.

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Escritor, professor da Universidade Estácio de Sá e doutor em Letras pela USP; seus livros mais recentes são o romance Goethe e Barrabás e De onde vêm as palavras