O YouTube inspira matérias e artigos. No Estado de S. Paulo de segunda-feira (23/8), Carlos Alberto Di Franco, membro destacado do Opus Dei, crítico da imprensa, inspira-se no vídeo em que o presidente Lula e o governador Sérgio Cabral dialogam asperamente com o estudante carioca Leandro dos Santos.
Em seu artigo ‘Lula e Cabral, vídeo revelador’, Di Franco pretende denunciar os bastidores da vida política nacional. No palanque eletrônico, os políticos sorriem e falam macio. Longe dos microfones e holofotes, são truculentos. Não há nisso nenhuma novidade. E hoje, nas mãos de quem quer que seja, os celulares e câmeras digitais podem revelar essa discrepância.
Mas também há algo de revelador no artigo de Di Franco. Sua capacidade de proclamar uma verdade, e ocultar outra(s). Sua proposta, em princípio, é a do crítico que só pensa em sua nobre missão:
‘Os programas eleitorais vendem uma bela embalagem, mas, de fato, são paupérrimos na discussão de ideias. Nós, jornalistas, somos (ou deveríamos ser) o contraponto a essa tendência. Cabe-nos a missão de rasgar a embalagem e desnudar os candidatos. Só nós, estou certo, podemos minorar os efeitos perniciosos de um espetáculo audiovisual que, certamente, não contribui para o fortalecimento de uma democracia verdadeira e amadurecida.’
Mostrar as contradições
Imbuído desse espírito, o articulista se dedica então a questionar as palavras e atitudes da candidata Dilma Rousseff, preservando a embalagem do candidato José Serra.
Ora, se a função de um jornalismo de qualidade e independente, do qual Di Franco se diz defensor, é rastrear a verdade corajosamente, por que não dar como exemplos, além das contradições que enxerga no PT, as contradições do PSDB? Ou será que seu compromisso como ‘orientador espiritual‘ de Geraldo Alckmin não lhe permite essa proclamada independência?
Diz o articulista que seu papel, como o de todo jornalista, é mostrar as contradições. Di Franco, no entanto, só denuncia contradições de um lado. Pergunta se Dilma é, afinal, a favor ou contra a legalização do aborto no Brasil, mas se omite quanto a Serra. Fica uma sugestão para seus próximos artigos: exigir do outro candidato, que já foi ministro da Saúde, idêntica clareza.
Contraponto do contraponto
Vale recordar que, em 1998, quando ministro de FHC, Serra assinou a Norma Técnica ‘Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes‘, autorizando os hospitais públicos a realizar abortos no caso de estupros. O documento remete ao Decreto-Lei n.º 2848, de 7 de dezembro de 1940, art. 128, inciso II, do Código Penal, que permite o abortamento quando a gravidez resulta de violência sexual.
Em março de 2000, Dom Raymundo Damasceno, secretário-geral da CNBB, esteve no gabinete de José Serra e dele ouviu as seguintes palavras: ‘Eu sou contra o aborto, mas não posso me furtar a oferecer a uma adolescente estuprada o aborto a que ela tem direito e vê-la morrer em um aborto feito em fundo de quintal’ (cf. artigo de Luiz Carlos Lodi da Cruz, presidente do Pró-Vida de Anápolis).
Conhecendo o vínculo de Di Franco com a imagem de católico irrepreensível – ‘o aborto, estou certo, é o primeiro elo da imensa cadeia da violência e da cultura da morte’ (O Estado de S. Paulo, 2/8/2004) –, espera-se que use o espaço que possui na mídia para cobrar, também de José Serra, um posicionamento sem retoques e ambiguidades, neste e em outros temas.
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Doutor em Educação pela USP e escritor; www.perisse.com.br