Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Alternativa para uma imprensa de esquerda

O Brasil precisa de uma imprensa de ‘esquerda’, no sentido dado à expressão pelo jornalista Marco Antonio Rocha, em sua coluna de segunda-feira (3/10) no caderno ‘Economia & Negócios’ do Estado de S.Paulo, sob o título ‘Vlado, democracia, PT, economia…’ [clique aqui e role a página para ler a íntegra do artigo]. Uma imprensa que seja corajosamente inovadora, progressista, cientificista e humanista, capaz, como propõe a interpretação de Marco Antônio, de ‘contrapor os pleitos e anseios da grande massa da população ao conforto e ao comodismo dos segmentos dirigentes’. Que tenha a lucidez de identificar as utopias possíveis, de não confundir o pensamento de esquerda com a ilusão de uma economia ‘de esquerda’.

Uma imprensa assim foi essencial para decifrar, na Europa, o legado da geração que foi às ruas em 1968 para interromper o fechamento do círculo de vícios que ameaçavam as conquistas sociais e políticas do pós-guerra. Uma imprensa assim seria a voz do brasileiro moderno, que não admite conviver com a corrupção, que reconhece a necessidade de dar novo significado ao nosso contrato social, o que implica, sim, entre outras coisas, desarmar a população civil e exigir eficiência do Estado na tarefa de prevenir a violência e manter os índices de desvios em níveis aceitáveis.

Não é a tecnologia que vai nos tornar possível essa imprensa, embora ela possa contribuir decisivamente para o seu surgimento e consolidação, na medida em que possibilita o protagonismo do cidadão. É a descoberta das convergências que pode revelar o tamanho da massa crítica que daria suporte a essa nova imprensa. A constatação de que muitas das divergências que separam o melhor do espírito nacional são irrelevantes no contexto histórico, embora pareçam insuperáveis em meio ao entulho de idiossincrasias que deixamos acumular no processo de reconstrução da democracia.

Tomemos como divisor de águas a data de 25 de outubro de 1975, dia da morte do jornalista Vladimir Herzog. Não por acaso, o artigo de Marco Antonio Rocha começa com a citação do episódio, e os jornalistas brasileiros que há 30 anos caminharam até a Praça da Sé, em São Paulo, para dizer um basta à estupidez do regime militar, sabem muito bem que, 10 anos depois, a aliança tácita que dera início ao desmanche da ditadura estava carcomida por interesses de grupos, dividida por lideranças erigidas apressadamente no vácuo da repressão.

Grandeza requerida

Há hoje um claro processo de redefinições em muitas instâncias da sociedade brasileira. Da universidade ao ambiente de negócios, crepitam idéias inovadoras e responsáveis sobre o que poderia ser este país. Falta uma mídia que lhes dê expressão, que leve à opinião pública essas reflexões, que ofereça um roteiro capaz de ser reconhecido no Congresso e no Executivo como contribuições da inteligência nacional para as reformas de que a sociedade necessita.

Empresários e executivos verdadeiramente engajados em projetos de sustentabilidade, que são a contrapartida privada a políticas públicas eficientes e democráticas, não encontram na imprensa interlocutores capazes de entender suas estratégias – o jornalismo econômico segue preso à análise do balanço, aos sinais de sucesso financeiro, à grandeza dos números, às declarações bombásticas de intenções de investimento que ninguém nunca vai checar. O jornalismo político é a colcha de retalhos que se vê na cobertura dos escândalos da hora. O jornalismo cultural é refém de um conceito de entretenimento que nos faz perder a noção do que sejam arte e cultura, quando não se entrega literalmente ao gozo dos jabaculês. A cobertura da vida urbana perdeu a noção de urbanismo.

Uma imprensa de esquerda, nesse sentido bem definido por Marco Antonio Rocha, precisaria ter a grandeza de se assumir como mídia, como veículo entre a inteligência e a ação. Precisaria acreditar que há vida inteligente na sociedade, e se esforçaria para ser digna de lhe dar repercussão, em vez de simplesmente eleger as fontes que melhor verbalizam suas próprias premissas.

Pensamento corajoso

Essa imprensa não pode nascer da mídia que hoje existe. Imaginar, por exemplo, que uma revista Veja fosse capaz de se restaurar, de voltar ao padrão de qualidade e dignidade que já teve há 20 anos, seria uma ilusão. Ou que o Estado de S.Paulo, a Folha de S.Paulo e o Globo possam se converter em veículos de tal maneira desprendidos de sua visão de mundo conservadora que se tornassem capazes de interpretar o Brasil de hoje. Seria o mesmo que acreditar no vôo do elefante.

Essa é a mídia que existe, e se existe é porque cumpriu até aqui um papel reconhecido por uma parcela significativa da sociedade. Da Abolição da escravatura à consolidação da República, essa imprensa teve seus momentos de glória e em muitos deles soube atender aos interesses da maioria. Ela cabe nos 6 milhões a 7 milhões de exemplares de jornais que são vendidos diariamente em todo o país. Encolheu nos últimos 10 anos e, a despeito das melhores condições econômicas atuais, do menor custo de insumos importados – pelo valor do real frente ao dólar – e mesmo com as possibilidades abertas pela tecnologia da informação, não consegue recuperar o viço. A mídia que existe é essa mesma, desse tamanho e com essas limitações. Não vai acabar nem vai se tornar mais relevante.

Mas a complexidade da sociedade moderna está a exigir muito mais do que realimentar a mediocridade pequeno-burguesa com mais de sua própria pobreza de espírito. Uma outra parcela da opinião pública com certeza adotaria e daria suporte a uma imprensa que, em vez de dar lustro a idéias pré-históricas, saudasse um novo e corajoso pensamento. Há um mercado de inteligência à espera de investidores responsáveis e jornalistas empreendedores.

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Jornalista