Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O nascimento do velho

No dia 28 de julho de 2020, o velho que morava dentro do menino resolveu nascer. O menino ficou sem saber direito o que dizer, nem disse: apenas olhou o velho nascer como se o velho se erguesse das entranhas da própria morte, até chorar o primeiro choro, entre aplausos da plateia que acompanhava aquele estranho parto. O velho teve medo de nascer e mesmo antes de vir ao mundo já chorava por dentro, um choro preso, contido, um choro imenso, que guardava as milhares de histórias recolhidas pela vida. O menino olhava o velho que nascia, e como se tudo de repente estivesse às avessas, o menino que recolhia e acalentava em seus braços o corpo do velho, e o embalava suavemente, e o consolava, e o protegia dos medos – cantava. Ah, o menino cantava com uma voz bonita, como fazem as mães. Cantava as mais antigas canções de ninar…

O menino, asmático, tinha mais medo que o velho, de num suspiro mais fundo ver a vida esvair-se, e o ar faltar-lhe, e findar-se o tempo. Mas, ao invés, o menino aprendeu olhando o velho que viver é fácil, é só viver. E estar sempre disposto a respirar fundo, bem fundo, cada vez mais fundo, como se no pulmão coubesse todo o ar que existe no mundo.

O menino olhava o velho que dormia em seu colo e rezava pedindo a Deus que o deixasse envelhecer bem, assim como envelhecera o velho que dormia. E no delírio do sonho que sonhava, o velho ouviu mais uma vez as palmas da plateia.

O menino cantou, de todas, a mais bela canção de ninar. E enquanto ninava o velho, que dormia cada vez mais profundamente em seu colo, a cortina foi se fechando, as luzes se apagando e o mistério da vida acontecendo. As lágrimas do menino molharam as faces do velho que sorria dentro do sono até que se ouviu a mais formidável salva de palmas deste mundo.

Nos camarins, um velho e um menino, em frente ao espelho, entre risos, caprichavam em cada detalhe da maquiagem.

O porteiro do teatro pegou a vassoura de pelos e começou a varrer o tapete entre as poltronas, sonhando com o espetáculo que dali a pouco encheria de emoção o palco do velho teatro. Na bilheteria, lá fora, já se formava uma fila enorme. A noite prometia.

Gê, meu querido, não o vejo há tanto tempo que já nem sei. Mas a emoção de ler aquela página do Correio com sua entrevista e ver a foto (que merece moldura eterna) não me permitiram ficar em silêncio. Por isso escrevi essa pequena crônica, que lhe ofereço, só para registrar o momento e seu mistério.

(para o querido Gê Martú)

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Jornalista