Venício Artur de Lima, sociólogo e professor aposentado da Faculdade de Comunicação Social da Universidade de Brasília (UnB), é um dos mais requisitados estudiosos brasileiros quando o assunto é mídia (expressão aportuguesada que resume o termo em inglês mass media, ou meios de comunicação de massa). Autor de vários ensaios e projetos acadêmicos, publicou há dois anos Mídia – Crise Política e Poder no Brasil, pela Editora Perseu Abramo, que vai às minúcias dos principais veículos de comunicação e mostra o quanto o papel de informar se confunde com o objetivo não explicitado de conduzir a opinião do eleitor. Recentemente, lançou mais um trabalho essencial para quem se interessa em pesquisar e entender os conceitos em que se baseiam o funcionamento e o discurso dos grandes proprietários da indústria da informação no Brasil.
Em Liberdade de Expressão x Liberdade de Imprensa – Direito à Comunicação e Democracia, editado pela Publisher Brasil, Venício desmascara a tentativa da imprensa brasileira de situar-se acima do bem e do mal, das leis, da ética e do interesse público, ao confundir liberdade de imprensa com liberdade das empresas de publicar o que bem entendem, e até mesmo com liberdade de expressão, um dos direitos individuais elementares que integram a Declaração Universal dos Direitos do Homem, elaborado pelas Nações Unidas pouco depois da Segunda Guerra.
Aos 65 anos, o professor não se cansa de debater o tema. Nesta entrevista, ele demonstra um pouco do pensamento que orientou sua intensa vida acadêmica e ainda orienta seus passos de eterno militante da democratização do acesso a informação como fator vital para o exercício da cidadania.
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O Jornal do Brasil vai deixar de circular na versão impressa. O que está acontecendo com a nossa imprensa?
Venício A. de Lima – Bom, não é só no Brasil. No ano passado, o Christian Science Monitor, que é um jornal tradicional americano de mais de 50 anos, também passou a ter somente sua versão eletrônica. A internet obrigou a mídia impressa a se repensar. Não tem sentido o leitor comprar no dia seguinte um jornal para ler ou saber de algo que ele já sabe desde o dia anterior. Mas não é só isso. No caso brasileiro, nos últimos anos, o que é até meio paradoxal, se você observar a tiragem total dos jornais impressos, há meses a circulação tem subido. Isso porque os jornais populares estão subindo sua tiragem; há um jornal mineiro, o Super Notícia, que é vendido por 25 centavos e que hoje circula mais do que a Folha de S. Paulo. Além de conviver com o fenômeno da agilidade da internet, a mídia impressa tem de redescobrir uma forma de ser necessária. Muita gente que estuda essas questões acha que os jornais ficarão cada vez mais ideológicos, analíticos, e até mesmo partidários. Isso já está acontecendo.
A tomada de posição já está acontecendo?
V.A.L. – Sim, e esse caminho vai estreitar ainda mais, no caso brasileiro, o espaço de circulação da mídia impressa, que sempre foi elitista até pela natureza do público leitor.
A dita independência dos jornais é um mito?
V.A.L. – Muito. Os jornais são mais do que nunca locais ou regionais, não são nacionais. A Folha de S.Paulo não é, o Estado de S.Paulo não é e O Globo, menos ainda. Folha e Estado, por exemplo, têm 80%, 90% da circulação em São Paulo. O Globo é cada vez mais carioca. As revistas semanais talvez continuem sendo nacionais, mas com espaço de circulação muito elitizado. Mas os dados de circulação dessas revistas não são confiáveis, não sabemos o número exato e a efetividade da distribuição. Se há um meio impresso em que essas consequências da internet, das transformações, estão acontecendo, esse meio é a Veja, que virou uma revista totalmente opinativa e não tem condições de contemplar leitores que não pensem como ela. Ela chega a ser intolerante com o leitor que não compartilha suas opiniões partidárias, ideológicas. Até as resenhas de livros são ideologizadas. O caso do Jornal do Brasil não é isolado. A gente não sabe ainda qual solução será encontrada por esses grandes grupos de mídia com relação à mídia impressa. Certamente haverá alguma, e até lá vamos ter, em alguns casos, o fechamento puro e simples ou a migração para a edição eletrônica.
Estamos ficando dependentes da internet e da escola para formar cidadãos inteligentes, críticos?
V.A.L. – Se for da escola, estamos lascados. No nível universitário, por exemplo, eu que passei boa parte da minha vida na universidade, pelo menos nas áreas com as quais tenho contato, tenho tido reiteradas decepções. Acho que a minha geração não conseguiu acompanhar as transformações que ocorreram na sociedade e insiste ainda num tipo de aula, num tipo de reprodução de conhecimento distanciado da realidade.
A academia vive num mundo paralelo?
V.A.L. – Estamos desviando um pouco da sua pergunta anterior, mas vou te contar uma experiência emblemática: às vésperas de iniciar-se, em Brasília, a primeira Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), que foi uma luta histórica, encontrei um coordenador de um programa de pós-graduação na área. Ele: ‘O que você vai fazer amanhã?’ Eu: ‘Amanhã começa a primeira conferência, estou totalmente envolvido com isso’. E ele: ‘Primeira conferência de quê?’. O sujeito não sabia que ia acontecer a conferência, nem o que ela era! Para mim, isso é emblemático da distância que existe entre as questões concretas, vitais para a sociedade, e o que se pensa e se produz no espaço acadêmico. Na carreira acadêmica a meritocracia determina. As pessoas têm de publicar, e aí surgem as revistas internas. Da minha perspectiva, agora externa ao processo, essa situação é preocupante.
Quanto à sua pergunta se a mídia contribui para a formação da cidadania, se colabora para a reflexão em certas áreas, acho um pouco mais complicado, porque existem esses cadernos de cultura ou semanais que os grandes jornais têm, que às vezes ainda trazem traduções de textos recentes de pensadores importantes etc. Mas a importância relativa disso é muito pequena.
A elaboração dessa pauta cultural é dirigida a um público restrito.
V.A.L. – Eu acho que a TV paga – que aliás é um fenômeno interessante porque tem crescido nos últimos dois, três anos até mais do que a indústria esperava –, apesar de ter um alcance pequeno em relação à população, também oferece algumas alternativas de qualidade. Mas como a mídia impressa, o alcance é muito reduzido. No fundo, essas são características que permeiam a sociedade brasileira, que é muito desigual, com um espaço de reflexão cultural muito pequeno. Temos deficiências incríveis na área dos equipamentos culturais, como teatro, cinema, música. Isso tudo, aqui, é muito reduzido. Tanto é que esse ponto está colocado nos programas dos candidatos à Presidência da República. Ainda falta muito para uma ampliação do espaço de reflexão sobre o país, seus projetos, a cultura nacional. A contribuição da mídia é muito pequena.
As chamadas ‘maiorias silenciosas’ estariam formando uma inteligência, uma sensibilidade, à revelia da mídia, e por isso a mídia estaria decadente?
V.A.L. – Esse é um ponto absolutamente importante e crítico. Eu acho que o poder da mídia na formação, na construção desse espaço que toda a sociedade tem, diminuiu nos últimos anos. Sobretudo pelo avanço da internet, que é um tipo de canal que quebra a característica fundamental da mídia tradicional, que é a unidirecionalidade. Enfim, esse poder da mídia que os frankfurtianos criticaram, na minha opinião com razão, certamente não existe mais. [Refere-se aos pensadores ligados à escola de Frankfurt, entre eles Max Horkheimer, Theodor W. Adorno, Herbert Marcuse, Jürgen Habermas, críticos do capitalismo, mas que viam limites nas teorias críticas marxistas na busca de novas alternativas de desenvolvimento social.] Por outro lado, não há dúvida para mim, que mesmo com todas as transformações recentes e com todos os avanços de uma mídia interativa e não unidirecionalizada, como a internet, a mídia tradicional ainda tem um poder importante, sobretudo, de tematizar o debate. Um poder de agenda.
O grande sintoma disso é que, se você olha os grandes jornais e os grandes portais de internet, as principais notícias são as mesmas.
V.A.L. – O que é mais preocupante, com relação a esse poder de agenda, é que se você pensar no que está acontecendo no Brasil, os temas predominantes nos espaços públicos brasileiros são pautados pela grande mídia: o assassinato da possível amante do ex-capitão e goleiro do Flamengo; a campanha eleitoral pautada no que eu chamo de pequena política, política udenista, no pior sentido que esse termo pode ter. E os atores políticos vão atrás dessa repercussão, às vezes de coisas que a rigor não deveriam ter importância. Mas é o que alimenta os colunistas, as manchetes de primeira página desses jornais e revistas, manipulações às vezes grotescas. Há um espaço na esfera política brasileira que é pautado por isso. Me incomoda muito que até gente do alto escalão da burocracia do governo se alimente diariamente de um clipping de mídia impressa, como se aquilo fosse a realidade do país. E não é. Eu sempre resisti a isso e chamei a atenção [quando trabalhou na Secretaria Geral da Presidência da República].
Mas esse poder de pautar a agenda política em círculos de poder ainda é grande?
V.A.L. – Agora a grande mídia começa a sofrer problemas de credibilidade. O fenômeno do prestígio do governo Lula, com toda a evidente má-vontade e hostilidade da imensa maioria da grande mídia, sobretudo impressa, fez com que aflorasse a questão da credibilidade. Hoje, capas como a da Veja (sobre os ‘radicais’ do PT) não têm mais poder de provocar maiores repercussões.
Os métodos de concessão e de renovação de concessões de rádio e TV não mudaram. A distribuição das verbas públicas com publicidade mudou pouco. Na área de internet, só agora, no último ano de governo, saiu um plano nacional para levar banda larga às regiões mais pobres.
V.A.L. – Eu tenho sido um crítico bastante frequente, azedo, do governo Lula na área de comunicação. Aparentemente, há um esforço nos últimos três anos para repensar e redistribuir as verbas públicas de publicidade. Isso não significa que o governo não continue a abastecer a grande mídia. Continua. Nem significa uma política de apoio a uma mídia que possa se constituir como alternativa de qualidade à mídia privada dominante. Mas há, aparentemente, um esforço para a descentralização das verbas.
A criação da EBC (Empresa Brasileira de Comunicação), iniciativa do Executivo aprovada no Congresso, é uma experiência. Trata-se de uma empresa que se autodefine como pública, o que é um avanço porque nós não tínhamos nada no país, positivado no sentido legal, de uma empresa pública de comunicações. Mesmo que você discorde de sua organização, dos vínculos com o Estado etc., agora é possível fazer uma discussão por dentro. Antes não existia nada nesse sentido. Foi um avanço inegável. E houve a convocação da Confecom, que não tem força para implementação de políticas – sabemos que nenhuma das mais de 600 propostas que foram aprovadas se concretizou até este momento –, como toda conferência desse tipo, mas foi propositiva. No geral, em relação ao status quo da comunicação no Brasil, não só não houve avanço, como em alguns casos houve retrocesso.
Por exemplo?
V.A.L. – A escolha do modelo da TV digital. No primeiro governo Lula, o ministro das Comunicações, Miro Teixeira, apontou numa direção que contemplava a possibilidade não só de uma construção tecnológica de um modelo adequado à realidade brasileira – com o envolvimento do parque nacional brasileiro, da possibilidade criativa da universidade brasileira na área tecnológica –, mas sobretudo contemplava a possibilidade de ampliação do número de concessionários, que seria o grande potencial democratizador da digitalização. O primeiro decreto, de 2003, fazia tudo isso. Em 2006, pós-crise do mensalão e nos acordos políticos que foram feitos e implicaram na mudança do ministro das Comunicações – que passou a ser um representante direto dos grupos tradicionais que dominam a área –, saiu um novo decreto e foi feita a escolha de um modelo que dá mais canais para quem já é detentor e impossibilita a ampliação dos concessionários, que era a grande expectativa com relação à digitalização. O PSOL entrou com uma ação de inconstitucionalidade em relação ao decreto de 2006. A Procuradoria Geral da República deu parecer favorável a essa ação, que entrou na pauta do STF três vezes e não chegou a ser discutida e votada. E apesar de haver uma pendência jurídica, o governo brasileiro está patrocinando a implementação desse sistema em países da América Latina. Recentemente esteve no Brasil uma delegação de países africanos para também poder adotar esse modelo. Não só não houve avanço, como houve recuo.
Enquanto na América do Sul alguns governos compraram a briga, no Brasil o governo foi sempre um gentleman com os setores da mídia que atuam como partido. E ainda assim sempre o acusam de uma suposta ameaça à sua liberdade. Procede?
V.A.L. – Nós chegamos a uma situação tão grotesca no Brasil que até as decisões judiciais relativas a um princípio jurídico de processos de investigações que correm em segredo de justiça têm sido consideradas por alguns jornais como censura prévia. Ou seja, eles sugerem se colocar acima do sistema legal, qualquer decisão tomada em relação à mídia é automaticamente considerada censura ou ameaça à liberdade de imprensa, de expressão. A mídia se coloca de uma forma como se gozasse de liberdade absoluta, o que é totalmente absurdo. No artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, você encontra que mesmo a liberdade de expressão pode sofrer restrições em benefício da honra, liberdade e privacidade das pessoas, que têm de ser protegidas. Não há princípio de liberdade absoluta.
O senhor está se referindo a um direito humano preconizado pelas Nações Unidas.
V.A.L. – Fundamental. No entanto, a mídia se apresenta como se sobre ela nada pudesse se colocar. O que nós temos hoje, em relação ao comportamento da imprensa, desde que o Supremo decidiu pela inconstitucionalidade total da Lei de Imprensa de 1967, é um comportamento ambíguo da própria Justiça. Em alguns casos, o direito de resposta já foi negado porque determinado juiz interpretou que não há regulamentação sobre isso. Mas mesmo a decisão do STF pela inconstitucionalidade da Lei de Imprensa deixou claro que não havia necessidade de uma lei para regulamentar o direito de resposta, porque o direito de resposta está contemplado na Constituição e seria auto-aplicável.
Isso serve, além de emissoras que detém concessões públicas, para jornais impressos e privados.
V.A.L. – Nós aqui não temos sequer o direito individual de resposta, embora esteja na Constituição. Então, tenho convicção de que realmente há um déficit imenso nessa área e, infelizmente, vejo que não conseguimos avançar. Os setores dominantes da grande mídia conseguem manter um poder na correlação de forças políticas que não permite avanços na área, até porque têm uma imensa e poderosa representação no Congresso Nacional. Ao contrário do que está acontecendo nos nossos vizinhos da América Latina e nas principais democracias representativas liberais do mundo, onde há, sim, vários aspectos de regulação do mercado da mídia, intervenção do Estado na garantia da liberdade de expressão de grupos que não são contemplados na grande mídia.
O senhor vê perspectiva que essas demandas pela democratização, levando em conta a informação como direito humano de promoção da cidadania, possam tomar rumo diferente a partir do processo eleitoral e da composição de um novo governo?
V.A.L. – Não. A minha expectativa positiva de avanço nessa área decorre do que está ocorrendo no espaço público, fora do Estado. Vejo com muito entusiasmo a organização dos blogueiros, o aumento da consciência sindical com relação à mídia, todas essas iniciativas que se tornam realidade – como esta Revista do Brasil, ou a nova TV dos Trabalhadores. O principal resultado da Confecom foi a sua realização, porque houve debate no país inteiro, nos mais diversos fóruns. Isso, sim, me parece alentador. A Confecom foi capaz de pautar um debate sobre a própria mídia que ela nunca pautou e nunca fez.
Essa é uma agenda a ser perseguida?
V.A.L. – É. Vejo com expectativa positiva o avanço da internet, por isso a importância do plano de banda larga, que, se aprovado, é um avanço fantástico, inexorável. Temos de caminhar para isso. O que me resta de expectativa positiva é nesse espaço no qual a sociedade se organiza e pratica uma comunicação diferenciada da produzida pela mídia dominante. E que espero que avance não só pela internet, mas pelos meios tradicionais, com uma entrada mais vigorosa do que antes, com esse espaço da mídia sindical.