Em Ficções, livro de contos do escritor argentino Jorge Luis Borges, encontra-se a narrativa intitulada ‘Funes, o Memorioso’, instigante história cujo protagonista, Funes, é-nos apresentado como o portador de uma memória prodigiosa porque se lembra de tudo, com detalhes, que lhe aconteceu na vida.
Como um aluvião, a memória do personagem Funes acumula o que ele viu, ouviu, sentiu, sonhou, pensou, desejou; o que lhe perturbou, suas dores, suas alegrias, enfim, tudo está gravado vivamente em sua memória, como se toda sua vida ele a tivesse vivendo agora, em ação, na suposição de que todo o vivido seja um presente eternamente vivo, pleno de instante, acontecendo.
Apoio-me nesse fabuloso conto de Jorge Luis Borges a fim de contraponteá-lo com o que ocorre com a mídia hegemônica, posto que, diferentemente do personagem Funes, do conto de Jorge Luís Borges, os meios de comunicação privados se constituem como um verdadeiro sistema de fabricar desmemória.
E não porque simplesmente sejam um sistema de máquinas de desmemória, intrinsecamente falando, mas porque se inscrevem – sob o signo do controle oligopólico – como um sistema cujo funcionamento é programado e reprogramado para servir à sanguessuga plutocracia que sucateia este não menos fabuloso planeta que nos cabe viver.
Sistema de desmemória
Por isso mesmo, constituem-se como um sistema que pode ser definido, simplesmente, como sanguessuga de memórias vitais. Como um Drácula, a privada desordem midiática esbanja-se com o sangue da memória comum da vida na Terra, ao mesmo tempo que a desprograma, com o propósito de criar um zumbítico presente desmemoriado, feito e refeito por um ampliado presente-morto, porque conectado com as máquinas de desmemória de todos os outros passados despóticos da trans-história da humanidade.
O resultado desse processo dracular contra a vida na Terra nada mais é, assim, que uma esdrúxula ‘máquina Frankenstein de desinformação e de má-fé’ porque é cinicamente tecida e entretecida por cacos ou fragmentos descontextualizados de desmemórias de tudo que espetacularmente um dia foi memória vital, individual e coletivamente, formando, no conjunto, o corpo monstruoso de memórias de traições e humilhações e imposições e genocídios da não menos lastimável e escandalosa trans-história de violências e guerras da humanidade, se considerarmos as grandes civilizações, erguidas pomposamente a partir de regimes ou sistêmicas máquinas de produção de sofrimento e de extorsão da riqueza dos povos.
Para tanto, tal sistema dracular sempre atua em bloco, como um verdadeiro partido político dos fascistas de todo o mundo, como um PIG, ou Partido da Imprensa Golpista, segundo a saborosa definição de Paulo Henrique Amorim; e golpista, bem entendido, em relação a tudo que pulsa e impulsa um movimento para a verdadeira democracia, feita para e pelos povos, como consequência direta do acúmulo de memória de luta, de resistência, de alternativa e coletiva alegria inscrita no DNA da memória de tudo que insiste e persiste, apesar de tudo, coletivamente.
Essa comum memória de vivos para vivos é a única que sempre garantiu e garante a vida, porque, sem ela, tudo que é sólido, o egoísmo e o exibicionismo dos ricos, desmancha-se no ar.
No entanto, para que a memória coletiva seja desmanchada no ar, no lugar da fútil e dracular voracidade plutocrata, esse sistema de desmemória se faz como planetário e está a serviço do imperialismo, razão pela qual cada colônia do sistema-mundo, ou do midiático sistema-mundo USA e abUSA de seus respectivos contextos vitais, a fim de produzir desmemória.
Dois santos de pau oco
Vejamos, a propósito, alguns casos atuais da midiática colônia brasileira. Como sabemos, funciona assim: a máquina impressa da revista Veja solta a notícia de que a atual candidata à presidência, Dilma Rousseff, pelo PT, foi (é) terrorista e sequestrou um embaixador americano, ao que a máquina da desmemória, chamada Folha de S.Paulo, igualmente publica, a respeito, copiosos artigos de desinformação, destacando o suposto lado terrorista de Dilma Rousseff; ao que, por sua vez, a máquina televisiva da Rede Globo – mas não apenas – faz ecoar e divulgar tal transcendental notícia como se fosse uma verdade revelada o suposto terrorismo de Dilma Rousseff, desembocando finalmente numa reportagem própria, em sua revista semanal, a Época, sobre o perfil terrorista de Dilma Rousseff.
E o que ocorre, como judicial consequência, com essa evidente e criminosa brasileira colônia midiática de desmemória? Nada, porque nada nunca ocorre, em termos de justiça, com os meios de desinformação. O sistema maquinal de desmemória desinformativa serve também como autoproteção, uma vez que, com o evidente objetivo de defender os interesses da plutocracia brasileira/planetária, mente, finge, dissimula, falsifica, difama e, em seguida, se perde a batalha, banca hipocritamente o bom mocinho.
Assim foi com o presidente Lula. Antes de se eleger, não obstante ter sofrido diariamente falsas acusações, descriminação e pilhagens editoriais negativas, uma vez eleito foi pomposamente entrevistado pelo Jornal Nacional, como se nada tivesse ocorrido antes.
Certamente, a mesma situação ocorrerá com Dilma Rousseff. Se eleita, num lance de pirotecnia imagética, o Jornal Nacional, com destaque, colocará os dois santos de pau oco, o casal vinte William Bonner e a Fátima Bernardes, para entrevistarem a nova presidenta, como se antes não a tivessem desconsiderado e difamado com falsas notícias e mesmo com uma nítida desaprovação, observável, seja no tom de voz, ao falar seu nome, seja na expressão facial.
Como Deus tem sido injusto!
E não foi assim, às avessas, que aconteceu, com Collor de Melo? O sistema de máquinas desinformativo não o divulgou e o promoveu e o elegeu presidente? Depois, em seguida, não promoveu igualmente seu impeachment, como se não fossem os corruptos responsáveis por sua eleição, quando ele não mais interessava à não menos corrupta plutocracia brasileira e internacional?
E, como máquina de desmemória, o que fez a colônia midiática brasileira no período da ditadura no Brasil? Em bloco, não exaltou generais? Não escondeu e protegeu torturadores? Não enriqueceu nesse período? Não perseguiu, implacavelmente, qual baioneta, estudantes, militantes, sindicalistas, artistas, enfim, qualquer um que resistisse à ditadura?
Como subservientes colônias, caro leitores, ouvintes e telespectadores, jamais lerão, ouvirão e verão, tenham certeza, nossos meios de comunicação noticiarem que os presidentes dos EUA, deveriam ser acusados de crime de guerra ou de lesa-humanidade. Nem por brincadeira, em seus programas de humor, jamais leremos, ouviremos e veremos tal surrealista notícia. Jamais!
Sejamos, então, mais modestos. Ainda com relação aos Estados Unidos da América, seria minimamente possível lermos, ouvirmos e vermos algum tipo de questionamento com relação à democracia americana? Seria imaginável ler, ouvir e ver algum meio colonial de comunicação noticiar que os EUA são uma ditadura pela evidente razão de que seus dois partidos políticos, o Republicano e o Democrata, são eles mesmos a própria plutocracia americana?
É possível uma democracia de plutocratas? Já os leram ou ouviram dizer que isso não é democracia? Por acaso a colocação em cena de personagens políticas advindas de partidos plutocratas é algum exemplo de virtuoso exercício de revezamento no poder? Já leram, ouviram e viram algum comentarista ou editorial dizendo que isso é farsa de democracia?
Voltemos ao contexto brasileiro. Leram, ouviram ou viram, com a merecida entonação, algum meio noticioso nos informar que o Brasil, durante o governo Lula da Silva, teve dois presidentes, o chefe do poder executivo e o presidente do Banco Central? Não é esse o verdadeiro ponto de contato entre Lula e Fernando Henrique Cardoso? Por que será improvável, num desses debates, ouvirmos um jornalista, servilmente empregado nesses meios, fazer uma pergunta como esta: ‘Dilma Rousseff, se eleita, a senhora vai presidir o Brasil com o presidente do Banco Central ou vai ser a única presidente?’
Mudemos, não obstante, de foco. Teria coragem Dilma Rousseff, se eleita, dizer um merecido ‘Não’ ao Jornal Nacional e ao Fantástico como fez o Dunga, como técnico da Seleção Brasileira, ao não permitir que seus jogares fossem exclusivamente entrevistados pelo Fantástico?
Oh, meu Deus, como o senhor tem sido injusto! Como pôde permitir que um técnico reacionário, como o Parreira, com um time tão medíocre, ganhasse uma Copa do Mundo? E como pode, por outro lado, Deus meu, ter sido tão implacável com o Dunga?
Ele não merecia melhor sorte depois de ter dito não à TV Globo, mesmo considerando que seu time era tão medíocre como o do Parreira?
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Poeta, escritor, ensaísta e professor de Teoria da Literatura – Ufes, Vitória, ES