A remarcação das 11 partidas apitadas pelo ex-árbitro Edílson Pereira de Carvalho, determinada pelo STJD (Superior Tribunal de Justiça Desportiva) tinha tudo para dar errado. Qualquer resultado dessas novas partidas que não seja a manutenção dos placares de origem será motivo para a torcida iniciar seguidos protestos. No caso do jogo entre Santos e Corinthians, na Vila Belmiro, a CBF (Confederação Brasileira de Futebol), o STJD e a TV Globo pegaram o meia Giovanni do Santos para responder por toda a culpa. Para se eximir das responsabilidades, a confederação, o tribunal e a TV apressaram-se a encontrar o pagador da pena.
Evidente que não estou defendendo os atos praticados por quatro torcedores, que invadiram o gramado da Vila para protestar contra a anulação da partida em que o Santos venceu, com sobra, o time do Corinthians por 4 a 2. Não há argumento consistente que derrube esse equívoco do torcedor. Mas não podemos fechar os olhos para o oportunismo do momento. Quando o narrador do Sportv, Milton Leite, dizia na transmissão que eles (jornalistas, funcionários da emissora) não tinham nada a ver com o fato de o STJD ter anulado o jogo, ele estava dizendo uma meia-verdade.
Sabe-se que os empregados das Organizações Globo (TVs, rádios, sítios, jornais) foram proibidos de questionar a decisão do STJD. No máximo, puderam (e podem) analisar os fatos que surgiram a partir da anulação das 11 partidas. Seria coincidência o fato de não haver um profissional sequer dessas Organizações que tenha se manifestado publicamente contra a decisão do tribunal? Não é coincidência. Evidentemente que não circulou um comunicado nas redações com essa determinação superior. Seria o fim, admitamos.
Representantes
A TV Globo preferiu apoiar a anulação dos 11 jogos a ver o Campeonato Brasileiro-2005 paralisado. Os prejuízos seriam enormes. Um dia depois de o tribunal ter anunciado o cancelamento de todas as partidas apitadas pelo ex-árbitro Edílson, o então presidente do STJD, Luís Zveiter (que se afastou do cargo na sexta-feira, dia 14) foi ao programa Bem, Amigos, do Sportv. Desde o início do bate-papo, Zveiter deixou clara sua decisão de anular apenas os jogos em que, de fato, tiveram seus resultados alterados pelo árbitro. Mas a pressão de Galvão Bueno, que defendia o cancelamento de todas as partidas, fez Zveiter mudar de idéia. No dia seguinte, o presidente do STJD mudou de opinião. Indício forte de que a Globo influenciou na decisão do tribunal.
Durante a semana que antecedeu à decisão, os programas da emissora mostravam as razões pelas as quais os jogos deveriam ser cancelados. Zveiter não segurou a pressão, julgando os fatos em cima de suposições. Não apresentou provas de que as partidas anuladas sofreram influência da arbitragem. A Justiça jamais condena sem provas. O STJD fez conjeturas. Anulou os jogos, agradando CBF e Globo.
E sobrou para quem mesmo? Claro, para quem se expõe na telinha todos os dias. Sobrou para os jornalistas. Por tudo isso, o narrador Milton Leite não deveria ter dito que ‘não temos nada a ver com a decisão do STJD’. Ninguém vê os diretores da Globo. Mas vê o narrador, o repórter, o comentarista. Eles são os representantes dos donos da emissora. Mas nada disso, claro, pode ser usado como motivo para que a torcida ameace a integridade dos profissionais que vão ao estádio para trabalhar.
Escolhas
Giovanni foi pego para cristo. Sobre ele foi jogada toda a culpa por erros que se acumulavam há mais de 15 dias. Quem conhece o craque santista sabe que não é dado a aparecer para torcida ou mídia. Depois do jogo de quinta-feira, recebi várias mensagens de torcedores do Santos e li outras tantas nos fóruns da internet. A que me chamou mais atenção foi a de Joel Emídio. ‘Giovanni não faz média com ninguém, principalmente com a imprensa. Alguém já o viu em programas esportivos, do tipo mesa-redonda, atrás de elogios ou mesmo de polêmicas? Podem até não gostar, mas nem com a torcida do Santos ele faz média’, disse Emídio, que concluiu: ‘Giovanni é um boleiro, um verdadeiro jogador de futebol. Ele foi sincero. Falou com a alma, bradou contra essa palhaçada que é o futebol brasileiro’.
Vou mais além: o meia santista fez um protesto silencioso, muito particular. Não fez um gesto sequer com as mãos que pudesse ter incitado a torcida a invadir o campo. Não quis aparecer para as câmeras de TV ou para as lentes dos fotógrafos. Tanto que deixou o campo da mesma forma como faz há mais de 15 anos: de cabeça baixa, fugindo do assédio dos repórteres. Ao dar um bico na bola, Giovanni chutou pro alto sua indignação em relação à anulação de um jogo em que ele tinha sido o astro, com passes magistrais, dribles e gols. Giovanni insurgiu-se contra os desmandos do futebol brasileiro. E para isso não precisou pronunciar uma só palavra ou mexer um dedinho das mãos que fosse.
O mais importante foi ver o Sportv ouvir o ‘outro lado’ sobre os incidentes na Vila, no caso os jogadores do Corinthians. O canal fechado foi extremamente infeliz em suas escolhas. Ouviu justamente o depoimento de dois jogadores que colecionam brigas e confusões dentro e fora de campo: Fábio Costa e Carlos Tévez. Na entrevista de Tévez, a TV se deu ao trabalho de colocar legendas para deixar claro o que o argentino falava. Sem olhar para seu passado recente, Tévez criticou a suposta falta de profissionalismo dos jogadores do Santos.
Armadilha
Profissionalismo, aliás, não é o forte das fontes ouvidas pelo Sportv. Estopim curto, Fábio Costa já saiu aos tapas e pontapés com vários torcedores do próprio Corinthians. Cansou de se envolver em confusões dentro de campo, com suas famosas ‘voadoras’. O argentino, então, já trocou socos com pelo menos três companheiros do elenco corintiano. No ano passado, quando jogava pelo Boca Juniores, Tévez causou a revolta da torcida do River Plate. O atacante comemorou um dos gols de sua equipe imitando galinha, como são tratados pelos adversários o time e a torcida do River. E o que dizer dos jogadores do Corinthians que deixaram o campo da Vila Belmiro dançando, com passos de samba? Não houve, de fato, provocação à torcida adversária, de incitação à violência?
Na sexta-feira (14), o comentarista do SportvNews Alex Escobar procurou eximir Giovanni de responsabilidade pelos fatos ocorridos na Vila. Escobar disse que a repercussão sobre a atitude do jogador estava sendo supervalorizada, quando seu gesto não foi de quem pedia para que a torcida invadisse o gramado. A declaração de Escobar foi dada em função de um procurador do STJD, horas depois do jogo, ter afirmado que Giovanni poderia ser suspenso por até dois anos. Parece que o gosto por holofote não é só de Zveiter, dado a antecipar na telinha decisões e penas impostas pelo tribunal.
Por tudo isso, cabe um alerta: CBF e STJD não medirão esforços para levar Giovanni a um julgamento em praça pública. O meia poderá ser responsabilizado pelos erros cometidos por essas entidades – que começou com a análise equivocada do caso Edílson Pereira de Carvalho em 2004, culminando com a decisão de anular partidas, sem provas, em cima de suposições. Será que a parte boa da mídia esportiva cairá nessa armadilha, deixando que CBF e STJD saiam ilesos de um episódio que eles mesmos criaram?
******
Jornalista em Brasília