Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Múltiplos enlaces do pensamento criador

A internet, sem a ação do pensamento humano crítico, é um espaço que liga o nada a lugar nenhum. Se não passar pela intervenção interpretativa e criadora dos seres humanos, a rede se reduz apenas a um ‘cemitério de sites’, como já disse num debate o estudioso da comunicação Juremir Machado da Silva, autor de As tecnologias do imaginário, entre outros livros. Por isso, de nada adianta a escola colocar tenros órgãos de crianças de 2 anos ao contato inútil com mouses e teclados. Se não houver um empenho concreto para ajudá-las a aprender a pensar, só vai sobrar para elas, em breve tempo, tendinites e outros ‘ites’ precoces e dolorosos. Só o pensamento crítico e criativo é capaz de despertar informações da morte internética.

Pois sem fazer ligações contextuais interpretativas, os múltiplos enlaces da internet ficam enterrados no limbo virtual, como imensas redes de raízes apodrecidas. De nada adianta ler notícias soltas, pinçadas, catadas aqui e ali, saltando de enlace em enlace, sem estabelecer relações concretas com a vida que vibra pelas estradas do mundo. Ir pulando de um acesso a outro só tem sentido se isso servir para o processo do pensar: surpreender-se, indagar-se, estabelecer relações, cuidando sempre para não generalizar, mas relativizar conceitos, observações e constatações e, então, encontrar sentidos e razões para agir na vida.

Notícias pescadas na rede de comunicação digital da nossa América nos últimos dias de fevereiro podem servir para exemplificar sentidos que se colhem ao perceber nexos entre notícias aparentemente sem ligação. Repercutiram na imprensa nesse período, sem qualquer aprofundamento por parte da mídia de mercado, a denúncia do presidente da Venezuela, Hugo Chávez Frías, de que o governo de Washington pretende assassiná-lo. Em seu programa dominical Alô, presidente, Chávez disse estar convencido de que estariam planejando sua morte em Washington e que, se o matarem, haveria ‘apenas um grande culpado nesse mundo’, e este seria, nas suas palavras, ‘o presidente dos Estados Unidos.’

Bravatas e oficialismo

O Departamento de Estado estadunidense retrucou que as afirmações são ‘ridículas’ e ‘falsas’. A idéia de que Bush queira assassinar Chávez ‘é simplesmente equivocada’, disse o porta-voz da embaixada norte-americana, Richard Boucher, em coletiva à imprensa. Ele não deixou, contudo, de reafirmar as habituais críticas de Washington ao governo de Caracas. ‘Acredito que toda a região ‘americana’ está preocupada com alguns acontecimentos que vêm se desenvolvendo na Venezuela, relacionados à oposição ao presidente Chávez e à liberdade de imprensa’, atacou Boucher.

Boucher declarou ainda que ‘toda a região’ está ‘preocupada’ com as presumidas ações guerrilheiras das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) na Venezuela. ‘Temos que nos preocupar com esses aspectos do comportamento venezuelano porque prejudicam a região. E precisamos enfrentá-los’. Qualificou de ‘positiva’ a ação dos Estados Unidos em torno dessas questões, mas que, ‘além dessa posição primitiva e dessas declarações ridículas, não temos visto nenhum progresso concreto para mudar esse quadro negativo’, relacionado, segundo ele, ‘às questões de democracia e liberdade de imprensa na Venezuela.’ O porta-voz estadunidense não deixou de advertir que os EUA observam de perto a posição da Venezuela na região, só que tal atitude não estaria ‘centrada em pessoas, mas, sim, em políticas e problemas’.

Para um leitor que vai galopando de enlace em enlace, os ataques e contra-ataques pareceriam apenas bravatas de um líder carismático latino-americano seguidas de respostas oficiais de um governo dominador. Mas há que se ler contextualizando o momento político e econômico, estabelecendo relações com a revolução bolivariana em curso na Venezuela e as escolhas recentes que Bush está fazendo ao indicar seus homens fortes nesse segundo mandato.

Orçamento de US$ 40 bilhões

O jornal cubano Granma publicou, em fevereiro, artigo opinativo classificando o controvertido embaixador John Negroponte, novo diretor de Inteligência [cargo criado recentemente], de ‘chefe dos que torturam, planejam magnicídios e golpes de Estado’. O texto ‘Negroponte: as sombras com o poder’ analisa a polêmica escolha desse nome para o cargo criado para reformar os serviços de inteligência após o atentado de 11 de setembro de 2001. O editorial de Granma sustenta que ‘o governo de George W. Bush é uma equipe de sombras. Os mais altos cargos de Washington são ocupados pelos personagens mais tenebrosos da fauna política reacionária norte-americana. Cada vez que o presidente indica alguém para um cargo, o escolhido é o pior de todos’.

A nomeação do diplomata nascido em Londres em 1939, embaixador na ONU em 2001 e no Iraque no ano passado, desencadeou pesadas críticas por parte de organizações de direitos humanos. O artigo do Granma também fala do desempenho de Negroponte como embaixador no México, nas Filipinas e, durante o regime militar em Honduras, entre 1981 e 1985. ‘Sob o reinado de Negroponte em Honduras, as tropas do país foram assessoradas pelas ditaduras da Argentina e do Chile e pelos especialistas da Escola das Américas’.

O texto destaca ainda o papel fundamental do diplomata para organizar a oposição ao governo sandinista da Nicarágua durante a presidência de Ronald Reagan. Como diretor de Inteligência, ele agora tem autoridade sobre as 15 agências de informações dos Estados Unidos, entre elas CIA, NSA (Agência de Segurança Nacional) e DIA (Agência de Inteligência da Defesa), mega-estrutura com orçamento anual total de 40 bilhões de dólares.

Esquema na OEA

Nesse mesmo período de críticas acirradas ao governo da Venezuela, outra autoridade recém-designada, Robert Zoellick, da comissão de política exterior do Senado estadunidense, fez referência direta a Hugo Chávez ao criticar a ameaça de ‘autoritarismo’ na América Latina e afirmar a necessidade de que os países de unam para ‘proteger a democracia’. Zoellick chegou a afirmar que Chávez realiza atividades antidemocráticas em ‘pé de igualdade’ com o ex-presidente Alberto Fujimori nos anos 80.

Enquanto o governo estadunidense faz pesadas críticas ao governo venezuelano, o conservador jornal Washington Post dedicou artigo de opinião ao presidente cubano Fidel Castro, que apóia abertamente a revolução bolivariana na Venezuela, e tem sido associado e visto freqüentemente ao lado de Chávez no noticiário internacional. Michael Shifter, vice-presidente do centro de estudos Inter-American Dialogue, desancou o líder cubano no artigo, afirmando que ‘poderia ocupar um dos primeiros postos da tirania do mundo’.

Prováveis ataques ao governo venezuelano também parecem estar sendo orquestrados no campo da Organização dos Estados Americanos. Pelo menos é o que anuncia o embaixador venezuelano da OEA, Jorge Valero, ao comentar que a delegação dos EUA já anunciou que apresentará proposta de reforma na Carta Democrática Interamericana. A mudança, como supõe Valero, buscaria uma eventual exclusão do governo de Hugo Chávez. Os comentários coincidem com a avaliação do ministro venezuelano de Informação e Comunicação, Andrés Izarra, de que os Estados Unidos estariam tentando ‘isolar e agredir’ a Venezuela. ‘Estes objetivos não vão encontrar respaldo majoritário na OEA. A Venezuela conta hoje com amplo apoio dos países do continente e está muito bem posicionada na OEA’, afirmou Valero, de Washington, em entrevista por telefone ao canal estatal Venezuelana de Televisão. A previsão é que a proposta seria introduzida na próxima Assembléia-Geral da OEA, no princípio de junho.

Vivências transformadoras

Ao vagar pela rede virtual nos seus múltiplos enlaces, os olhos focam outra notícia, aparentemente sem ligação com o que se propõe debater neste texto, que é observar, na mídia virtual, indícios de como os Estados Unidos promovem uma escalada midiática e política para agredir Chávez e a revolução bolivariana em curso. A notícia breve revela que poderosos interesses estadunidenses não são poupados na Venezuela governada por Chávez. O texto dá conta de que, em Caracas, a Coca-Cola foi obrigada a cerrar as portas por 48 horas. O fato é que o Serviço Nacional Integrado de Administração Tributária (Seniat), maior instituição venezuelana de arrecadação de impostos, ordenou à multinacional estadunidense de bebidas que fechasse por dois dias, devido a supostos ‘descumprimentos graves’ da norma local.

Selma Rendón, do Seniat, afirmou a rádios locais que a resolução momentânea contra a Coca-Cola foi causada pelo descumprimento da norma relativa aos livros de contabilidade e falta de cooperação da empresa nas exigências fiscais que fazem parte do plano agressivo de combate à evasão de impostos no país, uma das frentes da ação bolivariana. Nos últimos meses, segundo informou a funcionária, o Seniat fechou temporariamente mais de dois mil estabelecimentos e empresas comerciais.

Notícias catadas de forma aleatória na rede virtual podem se apresentar mortas, sem gerar sentidos, sinais ou atitudes. E então o leitor habitual apenas percorreria um vasto, quase infinito ‘cemitério de sites’, nesse caso sem notar qualquer nexo entre as notícias mencionadas neste texto. Mas, as mesmas notícias, a partir da leitura contextualizada que o pensamento crítico exige, são capazes de germinar, florescer, dar frutos traduzidos em idéias propositivas, intervenções críticas, ações renovadoras. Só aprendendo a ler o mundo como ensina Paulo Freire, com radicalidade e olhar profundamente interpretativo, é possível fazer da rede, em vez de um ‘campo santo’, onde jazem informações mortas, um terreno de vibrantes vivências transformadoras, com potencial para motivar movimentos e ações e, até mesmo, fertilizar revoluções mundo afora.

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Jornalista do Observatório Latino-Americano (OLA/UFSC), Florianópolis