O FMI voltou espetacularmente à ribalta noticiosa graças à reviravolta do affaire Dominique Strauss-Kahn sem que alguém tivesse tempo e ânimo para deter-se na grave denúncia do seu conterrâneo e antecessor, Michel Camdessus. Ex-diretor-gerente da entidade máxima da economia mundial (1987-2000), Camdessus declarou em Madri, na quarta-feira (29/6) que “a origem da atual crise econômica mundial é, em primeiro lugar, de caráter ético”.
A surpreendente constatação faz parte de um documento elaborado por um grupo de escol das finanças internacionais e conta entre seus signatários com os nomes de Paul Volcker, ex-dirigente do banco central americano e Horst Köhler, ex-presidente da Alemanha e sucessor de Camdessus no FMI.
A crise das hipotecas subprime nos EUA em 2007 está produzindo uma tragédia nacional na Grécia, arrasou a Irlanda, Portugal, Espanha, ainda tem fôlego para devastar algumas economias nacionais e tirar a esperança de uma vida melhor para, ao menos, uma geração.
Não se tratou de um acidente de percurso no sistema financeiro internacional, foi uma sucessão de imoralidades onde a facilitação de empréstimos imobiliários a quem jamais poderia reembolsá-los era apenas um detalhe. O resto foi fruto da letal combinação de ganância, incompetência e irresponsabilidade dos dirigentes das instituições financeiras dos dois lados do Atlântico.
Tudo como dantes
Empenhada em punir crimes, sobretudo os cometidos por espúrios chefes de Estado, a sociedade mundial concentra-se nos ilícitos penais, insensível aos ilícitos morais. Esta perigosa dissociação foi, segundo Camdessus, a responsável pela magnificação do crash financeiro em 2008.
Nos antípodas, o Partido Comunista chinês comemorou os 90 anos de vida obrigado a ouvir do presidente da República a advertência de que a corrupção ameaça a sobrevivência do partido. O inimigo já não é o imperialismo ou o capitalismo.
Aqui em nossas plagas, assoladas pela praga da impunidade, a falta de ética assume proporções colossais. O bacharelismo é tamanho que os bandidos já chegam à delegacia policial preparados para responder às infrações de artigos específicos do Código Penal. Como inexiste um Código de Ética – escrito ou consensual – as malfeitorias morais caem na vala comum dos pecados veniais, desculpáveis e esquecíveis.
Em maio de 1973, na fase mais negra da ditadura, o então ministro da Agricultura Cirne Lima acusou frontalmente o seu colega da Fazenda, Antonio Delfim Netto, de converter o governo num “ente essencialmente aético”. O acusador foi obrigado a demitir-se e o acusado, além de ter dinamitado o pífio “milagre brasileiro”, jamais se deu ao trabalho de esclarecer o episódio.
Desvendado o meteórico enriquecimento do ex-ministro-chefe da Casa Civil Antonio Palocci, sua única preocupação foi escapar ilibado de qualquer enredamento no Código Penal. Obtido o arquivamento na Procuradoria Geral da República, Sua Excelência escafedeu-se da cena pública com os 20 milhões de reais que empalmou em quatro anos de humildes consultorias. Nem o seu denunciante reclamou contra absolvição tão ligeira.
O que resta
A agressão ética não é um mal menor. Dos Dez Mandamentos de Moisés – fundamento moral do monoteísmo e do Ocidente – apenas três podem ser caracterizados como imputáveis pelos modernos códigos penais (assassinato, furto e falso testemunho); os demais estão na esfera da decência, consciência e espiritualidade. São centrais, essenciais.
A economia européia está ameaçada, instituições idealizadas como a União Européia estão em escombros, refugiados querem escapar não se sabe exatamente de que ou de quem, acampar em praças torna-se a única saída para as multidões de jovens sem perspectivas, a indignação substitui-se às bandeiras políticas, partidos soçobram, as mudanças tecnológicas fragmentam tudo o que encontram pela frente – do noticiário à filosofia.
Resta incólume, transcendente, o multimilenar e simplicíssimo malefício que Camdessus e outros magos das finanças identificaram como falta de ética.