O editorial da Folha de S.Paulo ‘Medidas Necessárias’, de 25 de agosto, é talvez uma dessas peças emblemáticas da engrenagem econômica e das lógicas política e midiática que têm nos governado nos últimos anos. Lógicas e engrenagem estas que se entrelaçam em sua tendência a uma rotunda e traiçoeira distorção da realidade.
As últimas pesquisas do Datafolha não deixaram muita opção para aqueles veículos que nunca disfarçaram sua preferência pelo tucanato, representado pelo presidenciável José Serra nestas eleições. As pesquisas apontam crescimento da vantagem da candidata petista Dilma Rousseff, que pode mesmo chegar a fechar o pleito no primeiro turno. Diante desta avassaladora evidência, a estes veículos não restou alternativa que não emitir um explícito obituário da candidatura Serra. Ressaltaram, após meses de sufoco, seu incômodo com a atuação errática do candidato desde que começaram as sondagens quanto à sua participação na contenda de 2010, culminando com a risível estratégia tucana de trazer Serra ao lado de Lula na propaganda eleitoral.
Daí em diante, surgiria no cenário político uma incógnita. Qual seria a postura que iriam adotar os órgãos de mídia que vêm há anos pautando sua atuação em alinhamento com os setores mais escancaradamente conservadores de nosso país, muito bem representados pelo PSDB e respectivas figuras públicas associadas ao partido?
A lógica econômica do governo
A candidatura Dilma, mais depressa do que o esperado, veio prestar sua ajuda na resposta a esta indefinição. Mal passadas algumas horas de sua ‘consagração’ pelas pesquisas eleitorais, Dilma já começava a discutir com auxiliares próximos e com o próprio presidente Lula novas medidas econômicas, de forte restrição na área fiscal, inclusive com o refreamento da política de reajuste salarial para o funcionalismo público.
Nada mais alvissareiro para aqueles que ainda temem que os comandantes do petismo possam, de alguma forma, ameaçar o status quo. O referido editorial da Folha de 25 de agosto não consegue disfarçar seu forte sentimento de alívio diante das últimas declarações enfáticas da presidenciável que, ao que tudo indica, deverá ser conduzida ao Planalto. Fixado na eficiência do Estado, no peso da dívida interna e no tamanho da carga tributária – velhas e macetadas bandeiras da ortodoxia econômica, tomadas sempre de modo axiomático –, o editorial atenta para o acerto das medidas que pretendem sanear as contas públicas e abortar a ‘velha ideia do Estado onipresente e gastador’ em um eventual governo Dilma.
Vai mais além o citado editorial, ao atribuir parte das causas do cenário negativo enfrentado por Lula em 2003 às ‘teses irresponsáveis defendidas durante anos pelo partido’ e ao exprimir seu temor diante das ‘correntes econômicas ligadas ao PT – que verão `neoliberalismo´ no que seria sensatez’. E a pirotecnia maior do texto em questão se dá na medida em que passa deliberadamente ao largo da atual lógica econômica do governo Lula. Uma lógica que, bem longe de defender o Estado onipresente e refutar o neoliberalismo, dá prosseguimento às privatizações a partir de inovadoras modalidades e à orientação de política econômica inaugurada no período FHC.
O atraso do avanço
Não se pode, no entanto, acusar desta vez o diário, incansável em se auto-proclamar em um terreno político progressista e democrático, de ter sido dúbio ou evasivo. O libelo neoliberal foi proferido em alto e bom som, com a enfática declaração de que ‘a proposta de reordenamento das finanças públicas torna-se menos improvável quando se especula que o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, poderá ocupar a pasta da Fazenda, e o ex-ministro Antonio Palocci Filho, algum cargo de relevo no eventual governo Dilma. Meirelles e Palocci, como se sabe, foram os artífices do ajuste realizado logo após a posse de Lula’.
Para aqueles que, posicionados mais à esquerda do espectro político, têm uma visão crítica com relação ao atual governo, não chegou a ser surpresa o conteúdo das ‘novas’ declarações da candidatura petista. Afinal, têm sido fartamente veiculadas análises centradas no caráter ilusório dos ‘avanços’ do governo Lula por todos aqueles profissionais, estudiosos e intelectuais que buscam aprofundar seu entendimento da realidade.
O real e inegável incremento de programas sociais, que indubitavelmente incidiram sobre a população miserável, retirando-a da pobreza extrema, não pode mascarar o abandono das medidas minimamente necessárias ao enfrentamento mais extenso e profundo das disparidades sociais em nossa nação. O caráter assistencialista e pouco emancipador das atuais políticas públicas; a continuidade sorrateira das privatizações, especialmente através das inúmeras parcerias público-privadas; a perseverança da sobreposição do orçamento financeiro em relação aos gastos com as áreas sociais; a não realização da prometida reforma agrária, ao lado, sobretudo, da priorização do agronegócio em detrimento da agricultura familiar, são sinais mais do que comprobatórios de que não se confrontaram os eixos substanciais de sustentação de um nefasto e excludente modelo econômico.
Muito jogo de cintura
Um cenário, portanto, bem distante daquele que ainda inspira ‘medo’ na mídia corporativa, e do qual ela está muito mais consciente do que parece quando emite seu reiterado brado contra os ‘perigos estatizantes’ e as ameaças de estouro nas contas públicas. Obviamente, no entanto, que não é do seu interesse desvendar este cenário aos leitores, cutucando os poderosos interesses que dele se beneficiam e que são, ao mesmo tempo, o seu pilar de sustentação.
Não deixa de ser notável, de qualquer forma, a enorme rapidez com que se concretizou o ‘amém’ aos mercados da pleiteante petista. Ainda que diante de uma conjuntura internacional e interna bem mais favorável do que aquela que Lula encontrou em 2003, a ‘Carta aos Brasileiros’ impôs-se prematuramente como salvo conduto para uma estreante na política.
Não custa, ademais, ressaltar o alarmante paradoxo que significa este salvo conduto em meio a uma campanha eleitoral que salienta diuturnamente o ‘caráter social’ da gestão petista. Uma gestão que, além de ter retirado milhões de brasileiros da miséria, teria ainda realizado o prodígio de fazer galgar para a classe média, uma classificação bastante polêmica, outros tantos milhões.
Falar em arrochar ainda mais o funcionalismo público em meio à estridente exaltação desse ‘cunho popular e social’ do atual governo – cunho que se diz querer imprimir à próxima gestão petista – é quase uma bofetada na cara do eleitor que permanece em sua crença no projeto ‘democrático-popular’. Ao mesmo tempo, trata-se de postura que escancara a continuidade do verdadeiro projeto político em jogo. Um projeto que, com a distribuição de seus milhares de bolsa família, transitou do apoio que outrora granjeava no seio de uma classe média esclarecida, e em boa parte composta pelos funcionários públicos, para a subserviência de uma população carente e fiel à ‘caridade’ que tem recebido.
Resta esperar para saber como uma presidente que não conhece o submundo do qual é egresso o ex-operário e atual mandatário da nação poderá levar adiante o complexo projeto atual. Afinal, é necessário muito jogo de cintura para fazer crer à população que o bolsa-família é a mola-mestra de uma política que tem como alavanca maior e inequívoca os maiores e poderosos grupos econômicos.
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Economista e editora do Correio da Cidadania