Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Cachorro dentro de casa, pode. Carneiro, não?

O que você diria se seu vizinho de apartamento trouxesse para dentro de casa um carneiro vivo com o fim de sacrificá-lo num ritual? Pois a festa muçulmana do Aid el-Kebir, em que se comemora o sacrifício que Abrahão ofereceu ao Senhor – no Antigo Testamento, naturalmente – ainda é comemorado em países para onde muçulmanos emigraram nas diversas diásporas.

O episódio bíblico é de uma violência aterrorizante. Abrahão é convocado a sacrificar o filho Isaac. O menino, enganado pelo pai, segue indefeso, sem saber que a vítima não é um cordeiro, mas ele mesmo. Na subida do monte, ainda pergunta ao pai onde está a hóstia (originalmente, assim era conhecida a vítima), uma vez que carrega um feixe de lenha às costas e, ao contrário de outras vezes, não levam animal algum. Abrahão responde apenas: “Deus providenciará a vítima para o sacrifício”.

Lá chegando, sem mais delongas, o pai amarra o filho sobre o altar (esta palavra originalmente designou apenas o bloco de pedra sobre o qual eram feitos os holocaustos) e toma a arma para fazer a imolação. Já de mão erguida, pronto para enfiar a faca no coração do filho, aparece um anjo que lhe ordena sustar o sacrifício. Na mesma hora aparece entre os arbustos um carneiro para ser sacrificado no lugar de Isaac (Gênesis, capítulo 22).

Conotação negativa

A lembrança do episódio, celebrado pelos muçulmanos na terra natal ou em países que os receberam como imigrantes, é fonte de aborrecimento para todos. Irrompem, inevitáveis, os choques culturais que nem sempre recebem de quem emigra e de quem os acolhe as cuidadosas atenções que deveriam merecer.

Em Da primeira guerra aos nossos dias, volume 5 da História da Vida Privada (organizado por Antoine Prost e Gérard Vicent) – a coleção geral é dirigida por Philippe Airès e Georges Duby – autores referenciais examinaram os contextos advindos de ajustes e acomodações que imigrantes e locais precisam fazer em nome do bom convívio social, definindo limites consensuais entre as partes. A propósito, lembre-se a polêmica do uso do véu por muçulmanas na França e a recente carta de um ministro aos estrangeiros que fixaram residência na Austrália.

Escrevem eles: “Conseguir um carneiro vivo é difícil. Guardá-lo em casa e sacrificá-lo no devido momento gera conflitos com os vizinhos”. Elembram que os muçulmanos não entendem as reações ao ato de trazer o animal para dentro do prédio e sacrificá-lo no apartamento. Ao mesmo tempo, como não têm o costume de manter animais dentro de casa, ficam chocados ao ver que seus vizinhos mantêm cachorros e gatos no ambiente doméstico. Os muçulmanos ficam mais desconcertados com a presença do cachorro, que tem uma dupla conotação negativa em sua cultura.

Boa pauta

Problemas como os citados tendem a multiplicar-se e ampliar-se em muitas nações. Elas estão despreparadas culturalmente para receber um novo tipo de imigrante. Até há pouco tempo, os refugiados procuravam outro país ou eram ali acomodados por motivos políticos. Agora tendem a ser, cada vez mais, também por força de desastres ambientais.

O Brasil é vulnerável em quase todas as suas fronteiras geográficas, mas o será ainda mais nessas novas fronteiras. Aqui o imigrante se deu tão bem que não raro passou a ter preconceito com quem o acolheu.

É uma boa pauta para a mídia. O tema é complexo e requer aprofundamentos. Mas é bom que nos preparemos para a nova realidade que se avizinha.

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[Deonísio da Silva é escritor, doutor em Letras pela Universidade de São Paulo, professor, pró-reitor de Cultura e Extensão da Universidade Estácio de Sá, do Rio de Janeiro, autor de A Placenta e o Caixão, Avante, Soldados: Para Trás e Contos Reunidos (Editora LeYa)]