Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Agendar uma pauta e correr para confirmar

Matéria publicada nas páginas 113 a 116 da edição desta semana da revista Veja (data de capa de 6/7/2011) sobre a atual gestão da Universidade de Brasília (UnB) é um atestado de mau jornalismo. Tipicamente, o ângulo da reportagem já havia sido determinado antes. O repórter só foi ao campus para confirmar aquilo que a direção editorial da revista já tinha decidido noticiar, independente de as afirmações corresponderem ou não ao que acontece na realidade.

Mais uma vez, infelizmente, a revista utiliza o seu poder editorial para adotar na reportagem uma posição política contra aqueles que não se coadunam com a sua ideologia. É lamentável impregnar falsamente a reportagem com a opinião da direção da revista, fingindo fazer jornalismo.

Sem identificar

A matéria assume posição político-editorial logo na abertura. Já começa acusando a atual administração da UnB de cercear a opinião, tolher a liberdade de pensamento, perseguir pessoas antes de qualquer outra informação. O título, ruim, reforça o caráter opinativo. Quer ligar a universidade ao treinamento fundamentalista.

Se há algo que excede hoje na Universidade de Brasília é liberdade. O atual reitor, José Geraldo de Sousa Jr., pode até ter alguns defeitos, mas ele não pode ser acusado de intolerância política. A diretoria do sindicato dos docentes faz uma aberta oposição política ao reitor, os estudantes se manifestam como e onde querem, os recursos são distribuídos por meio de editais que proporcionam direitos iguais para todos (uma novidade desta gestão), os professores têm absoluta independência para lecionar os conteúdos que escolhem, os debates nunca foram tão livres e espontâneos. Fala-se de tudo: liberação da maconha, eleições, partidos políticos, sexo, cotas, direitos de gêneros e tantos outros temas da agenda pública. Quem duvidar, compareça hoje ao campus da UnB.

O jovem repórter Gustavo Ribeiro não aprendeu as boas lições do jornalismo: ouvir os dois lados e apurar com competência profissional. Ou prestou-se a ser apenas menino de recados da direção editorial da revista – o que é pior. Se uma procuradora foi alvo de manifestações num debate por atacar a política de cotas para negros, foi uma reação das pessoas presentes e nada tem a ver com a atual gestão. Aliás, contradiz a reportagem, atesta a liberdade.

Quem amplia ou diminui a carga horária de um professor – outra das acusações da matéria – não é o reitor, é o colegiado do departamento ao qual o docente pertence. Isso não pode ser imputado à reitoria. Pior ainda, a declaração não está “na boca” da professora que teria reclamado, mas de um docente que teria ouvido a afirmação dela. Mas, por incrível que pareça, ele não é identificado na reportagem. Citação terceirizada, afirmações no condicional, mau jornalismo.

Mau caminho

A matéria demonstra que o repórter foi atrás apenas de quem confirmava a pauta predefinida. Um ex-professor voluntário não é a melhor fonte para falar sobre questão tão sensível como perseguição política em uma universidade. Primeiro, ele é ex; segundo, é professor voluntário. Se ele é um dos “maiores especialistas do direito brasileiro”, por que é professor voluntário? Por que não prestou concurso? A UnB tem hoje quase três mil professores do quadro que poderiam avaliar melhor que os voluntários se há liberdade de cátedra e debates no campus.

Um dos ouvidos é um folclórico professor que, num blog pessoal, se auto-intitula porta-voz da extrema direita. Infelizmente, há pessoas que ainda hoje dividem o mundo entre esquerda e direita, como faz a própria reportagem. Outro docente citado tem vários processos no Conselho de Ética movidos pelos seus próprios colegas. Nada a ver com a administração central. Por que a matéria só ouviu docentes que, por razões pessoais, se dispõem a reclamar?

Os fluxos administrativos nunca foram tão democráticos na UnB como são hoje: seguem obrigatoriamente o caminho dos órgãos colegiados. Nada mais democrático. Depois da crise de 2008, o Conselho de Ética foi restaurado, a ouvidoria implantada, os colegiados fortalecidos. Uma professora ouvida na matéria reclama por ter perdido a “chefia” de um curso, problema localizado no seu departamento, que nada tem a ver com a administração central. A respeito dessa acusação, mais uma vez, a reportagem segue pelo caminho do mau jornalismo. Traz uma declaração entre aspas de um professor que “não quer se identificar por temer represálias”, recurso hoje utilizado por certo jornalismo panfletário que camufla declarações do próprio veículo fingindo tratar-se de alguma fonte credenciada.

É fácil encontrar alguém descontente, por razões pessoais, com o objetivo de comprovar uma pauta jornalística pré-agendada. Mas é sintoma de péssimo jornalismo. Infelizmente, há tempos, a revista Veja optou por este caminho: escolhe seus desafetos e utiliza o jornalismo contra eles.

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[Luiz Gonzaga Motta é professor de jornalismo da Universidade de Brasília]

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CARTA ABERTA À VEJA

Contra o artigo “Madraçal no Planalto”

Barbara Freitag-Rouanet

 

Quem afirmar, em 2011, que a universidade criada por Darcy Ribeiro, há cinquenta anos atrás, agora está sendo “palco das piores cenas de intolerância “, tendo sido “tomada por um patrulhamento ideológico tácito”, só pode ser muito desinformado ou muito jovem, ou quem sabe: ambas as coisas.

Seja como for, conheço um remédio infalível para suprir essa falta de informação: assistir ao documentário de Vladimir Carvalho Barra/68 – sem perder a ternura (2000), que mostra os vários momentos da formação da UnB através de quatro décadas. O filme deu a volta ao mundo, tendo sido exibido em Paris, Havana, Fribourg e em várias capitais brasileiras, entre elas Rio, São Paulo, Salvador, Porto Alegre e obviamente em Brasília. Aqui, foi exibido no Cine Brasília, no Auditório dos Dois Candangos no campus da UnB e em salas de aula do Minhocão. O filme começa e termina com longas entrevistas com o fundador, Darcy Ribeiro, que forneceu um “retrato falado” da UnB, mostrando as dificuldades de sua fundação em que teve que apelar até mesmo à ajuda do Papa João XXIII, vencer a oposição política feita à sua ideia revolucionária, e lutar pela sobrevivência dessa ideia durante a ditadura militar.

Vladimir Carvalho mostra através de vários testemunhos por pessoas envolvidas com a UnB, como desde 1964 o campus da UnB foi invadido pela polícia e pelo exército sucessivamente (em 1964, 1965, 1967, 1968, 1977), levando em 1968 à prisão de Honestino Guimarães, o líder do movimento de resistência, e à demissão coletiva de mais de 200 professores, em protesto à brutalidade demonstrada pelos invasores das tropas de choque. Vladimir Carvalho capta com sua câmara, até mesmo um depoimento do então reitor, José Carlos Azevedo, capitão-de-mar-e-guerra, imposto à comunidade acadêmica pelo braço forte dos generais no poder.

Coação aberta

Quem viveu ou viu essas cenas de brutalidade com que a universidade da Novacap foi mal-tratada destruindo-se laboratórios, bibliotecas, salas de aula, pisoteadas pelas botas da ignorância e do autoritarismo durante os anos sessenta e setenta, jamais cometeria a leviandade de falar, hoje, da UnB como sendo “palco das piores cenas de intolerância”, de “perseguição” ou “patrulhamento ideológico”. Sem falar do paralelo de má fé e mau gosto traçado entre o capitão-de-mar-e-guerra, Azevedo, empossado pelos seus superiores da hierarquia militar, com o reitor atual, José Geraldo de Souza, eleito democraticamente pela comunidade acadêmica e cujo único “defeito” é ser tolerante e respeitosamente democrático.

Falo aqui, em conhecimento de causa, e na qualidade de professora contratada em 1972, hoje emérita da UnB, que ao combater a ditadura dentro e fora da UnB, foi efetivamente perseguida, pelo então reitor, que quando não vinha pessoalmente assistir cursos, palestras, manifestações, mandava os seus “observadores” à paisana, entrar em sala de aula (em que supostamente o professor é soberano e autônomo) para efetivamente “patrulhar” a bibliografia, as palavras ditas, os programas acadêmicos sugeridos e perseguir.

Exemplo: meu pedido de ascensão funcional de colaboradora (com doutorado defendido na Universidade Livre de Berlim em 1972) ficou “depositado” por sete anos na Reitoria e devolvido, sem ser tocado, com o argumento de que estava “ocupando espaço indevido” no local. Somente fui nomeada “professora titular” depois da redemocratização da sociedade e da universidade brasileiras.

Quando pedi licença (não remunerada) para acompanhar meu marido brasileiro, diplomata, para o exterior, como permitia a lei, fui intimada a pedir demissão. De volta a Brasília, seis anos depois, com pós-doutorado financiado pela Deutsche ForschungsgemeinschaftBonn, somente fui readmitida na UnB, como “colaboradora”, recomeçando a carreira, a partir da estaca zero.

Alunos e colegas meus foram coagidos pela estrutura universitária autoritária a não aceitar minha orientação, ou somente informalmente, pois foi exigido “de cima” que na hora da banca, outro professor “politicamente correto” me substituísse.

Qualificação e excelência

Somente exponho aqui meu caso pessoal para dizer que essa opressão e esse patrulhamento vieram comprovadamente “de cima”, sendo amplamente divulgados na imprensa da época, que reproduziu nas palavras do então reitor Azevedo, que “a dama de Berlim”, que criticara numa SBPC o sistema educacional brasileiro, com recurso aos dados do IBGE e de pensadores como Florestan Fernandes, Celso Furtado e Gilberto Freyre, faria melhor deixar o país e não intrometer-se em assuntos internos do Brasil.

Nessa época, fui protegida pela maioria dos meus colegas, alunos, leitores, amigos. Entre eles encontravam-se nomes como José Geraldo de Souza, Nair Bicalho, Safira Ammann, Aldayr Barthy Brasil, Marco Antônio, Roque Laraia, Roberto Cardoso de Oliveira, Nadya Castro Guimarães. Alguns entre eles, já faleceram, outros se tornaram professores titulares, diretores da Capes, altos funcionários do MEC, do CNPq ou do Itamaraty.

Sabendo, por experiência própria, o que é patrulhamento ideológico autoritário, intolerância política, xenofobia, machismo e opressão, venho com esta carta aberta repudiar enfaticamente a matéria tendenciosa, superficial, injusta e pouco comprovada, veiculada pela Veja, procurando desqualificar a UnB como um centro de qualificação e excelência das novas gerações brasileiras e denegrir a imagem do seu Reitor, José Geraldo de Souza, equiparando a instituição e seu representante máximo aos tempos negros da ditadura militar no Brasil. [Rio de Janeiro, 4 de julho de 2011]

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[Barbara Freitag-Rouanet é professora emérita da UnB]