Não pude comparecer ao 1º encontro de blogueiros progressistas, que se realizou em São Paulo, entre 20 e 22 de agosto. Surpreso pelo convite, diante da minha notória inabilidade com os meios digitais, escrevi uma carta aos meus anfitriões, lida pelo meu filho, Angelim. Encurtei o texto original para atender aos limites da programação. Foi esse texto que circulou pela blogosfera. Decidi apresentar aos meus leitores a versão completa.
Sinto-me muito honrado pelo convite, que devo ao [Luiz Carlos] Azenha e à Conceição [Lemes], para participar deste encontro. É uma iniciativa generosa e gentil para com um analfabeto digital, como eu. Garanto que sou capaz de ligar e desligar um computador, de enviar e receber mensagens. Não garanto nada a partir daí. Como, então, estou aqui?
Sou – digamos assim – um blogueiro avant la lèttre. Não podendo ser um tigre, posto que sou Pinto, fui precursor na condição de blogueiro de papel – e no papel. Às vezes, por necessidade, também um tigre in fólios – e nada mais do que isso.
Meu pioneirismo teve origem no já distante ano de 1987. Eu tinha 38 anos de idade e 22 de profissão e estava na ‘ponta de dois dilemas’, conforme dizia pomposamente um conhecido, meio confuso na forma de se expressar. Numa ponta, a carreira profissional bem assentada em O Estado de S.Paulo, então com 16 anos de ‘casa’, sem interrupção, e também no grupo Liberal, a maior corporação de comunicação do norte do país, no qual tinha 14 anos, com um rompimento pelo meio, quando tentaram me censurar, logo superado pelo restabelecimento da minha liberdade de expressão.
Do outro lado, uma matéria pronta, importante, bombástica até, mas que não encontrava quem a quisesse publicar. Era o desvendamento do assassinato do ex-deputado estadual Paulo Fonteles, por morte de encomenda, executada na área metropolitana de Belém, o primeiro crime político em muitos anos na capital do Pará. Crime que, se impune, abriria – como abriu – as portas da legalidade para uma enxurrada de homicídios políticos.
Sem capital
O Estadão publicara todas as matérias que eu escrevera até então sobre o tema. Mas aquela, que arrematava três meses de dedicação quase exclusiva ao assunto, era longa demais para os padrões de cobertura que a grande imprensa já se impunha. Além disso, o jornal já dera muito a respeito, segundo a diretriz quantitativa do editor, no Brasil cada vez mais distante da cena do crime, cada vez mais quantitativo.
Já O Liberal considerava impublicável minha reportagem porque ela apontava como envolvidos ou coniventes com a organização criminosa alguns dos homens mais poderosos da terra, dois deles listados entre os mais ricos. Eram importantes anunciantes. O jornal não arriscaria perdê-los, embora reconhecesse que a matéria era consistente e merecia ser divulgada.
O jeito era aceitar a impossibilidade e voltar à condição de empregado das empresas jornalísticas? Ao invés de me submeter, decidi ir em frente. Refleti sobre a minha experiência na imprensa alternativa, que brilhou durante a ditadura militar: em Opinião, Versus e outras publicações. E em algumas das minhas próprias criaturas, como o Bandeira 3 e o Informe Amazônico. E ainda no único modelo internacional de que tinha referência, o I. F. Stone’s Weekly. Virei outsider definitivo. Sem volta.
O primeiro desafio para um jornal verdadeiramente independente é administrativo. Sem uma gestão alternativa, uma publicação alternativa não conseguirá se definir como tal e nem sobreviver por mais tempo. Qual o custo mínimo para não depender de ninguém, não dependendo, sobretudo, de anunciantes?
O menor tamanho é a unidade. Logo, o Jornal Pessoal não devia ter mais do que um empregado, que seria o seu próprio editor. Como não sei desenhar direito, nem aquela barquinha a vela que a professora nos impunha no antigo curso primário, me vali do meu irmão, Luiz, exímio no traço. Eu precisaria de um ilustrador porque meu jornal não teria fotografia, que o iria onerar. E mesmo as ilustrações seriam poucas, para não fatigar o artista, que, como todo artista, ao contrário de nós, operários das letras, é feito de barro fino.
O leitor que se desincumbisse de tanto texto, mais uma contradita às regras do sucesso na comunicação. O jornal iria desafiar a física financeira e o marketing. Iria ser o antiveículo, levitando contra a lei da gravidade e os conselhos dos experts (ou espertos).
Assim, o Jornal Pessoal ficou do tamanho mínimo minimorum. Qualquer encolhimento, desaparecia. Mesmo com esse perfil diáfano, faltava um complemento: para não depender dos humores de anunciantes, o jornal nunca aceitou publicidade. Teria que viver da venda avulsa. Seu leitor teria que ir às bancas de revista, que, em Belém, costumam ser túmulos de jornais.
A empresa não dispunha de capital suficiente (na verdade, não tinha capital algum) para organizar serviço de assinaturas, exceto nos dois primeiros anos, quando apliquei nela grande parte da indenização recebida de O Estado de S. Paulo. Vendendo no varejo, caso desaparecesse, o jornal não causaria prejuízo a ninguém, exceto ao seu responsável.
Fora do léxico
Publicação alguma vive de venda avulsa, diz o axioma do setor. Se sobrevive, é porque tem algum financiador oculto. O Jornal Pessoal deverá completar 23 anos de vida no próximo mês (cartas à redação será a melhor comemoração) sobrevivendo do dinheirinho dos seus 1.700 compradores (em uma tiragem total de 2 mil exemplares quinzenais). Não há nenhum caixa 2 nem financiador secreto. Mecenas é fantasia ou ilusão, ao menos no Pará. Não abre seu cofre por causa alguma, ainda que a mais meritória e de interesse coletivo. A não ser a causa do seu cofre.
É claro que fiquei bem mais pobre desde que o Jornal Pessoal começou a circular. Minha última variação patrimonial, devidamente declarada ao leão do imposto de renda, ocorreu em 1987, quando comprei um daqueles Passats fabricados pela Volks e exportados para o Iraque (que, depois da invasão americana, teleguiada por computador, foi prudentemente mantido na garagem para não se expor a algum míssil perdido). Hoje ando de Mercedão, o ‘busão’ da mesma Volks, na qual os brasileiros órfãos de autoridades legítimas são massacrados diariamente pelos barões do transporte coletivo urbano, responsáveis pelos caixas 2 dos políticos municipais (e também dos mais-que-municipais).
Como um jornal com essas características, e outras mais, que viriam a se assemelhar aos blogs de hoje, ainda existe, tornando-se a mais duradora das publicações alternativas brasileiras em todos os tempos? Às vezes me faço a pergunta e nem sempre encontro uma resposta convincente.
No final de 2004, cansado pelo desgaste do trabalho e as perdas pessoais, pensava em encerrar a carreira do jornal, achando que ele já havia cumprido sua missão. Foi quando, em janeiro do ano seguinte, depois de muitas ameaças, fui agredido fisicamente pela primeira vez, de forma covarde, por um cidadão 19 anos mais novo do que eu, um dos donos do grupo de comunicação no qual eu trabalhara (ao lado do pai do agressor) e que na época era simplesmente o presidente da comissão em defesa da liberdade de imprensa da OAB do Pará. O agressor me atacou pelas costas e contou com a cobertura de dois policiais militares, que usava – e continua a usar – como seus seguranças particulares.
Qual a causa da brutalidade? Um artigo que publiquei dias antes sobre o império de comunicação do agressor. O texto continha inverdades, era ofensivo, invadia a privacidade dos personagens? Nenhuma das alternativas. Mas desagradava aos senhores da comunicação. Embora tendo a emissora de televisão de maior audiência do Estado, afiliada à Rede Globo, o jornal que ainda era o líder do segmento (já não é mais) e estações de rádio, não usaram seus veículos para me contraditar ou mesmo atacar com o produto que constitui seu negócio: a informação.
Ronaldo Maiorana me atacou com os punhos e, antes que eu pudesse reagir à surpresa, justo num dos momentos agradáveis da vida (almoçando ao lado de amigos em restaurante situado num parque público, onde tem sua sede a Secretaria de Cultura do Estado), o agressor fugiu, protegido por seus truculentos seguranças, que deviam estar no quartel ou na rua, protegendo a população, que lhes paga os vencimentos. Por este e muitos outros motivos, Belém é uma das cidades mais violentas do país. O Maiorana agressor contribuiu com seu ato para encorpar essa violência.
O que dela resultou? O agressor fez acordo com o Ministério Público do Estado (a vítima não tem voz na justiça especial quando se nega ao acordo), entregou cestas básicas a instituições de caridade (uma delas ligada à família Maiorana) e permaneceu solto, com sua primariedade criminal intacta. Mas ele e seu irmão ajuizaram 14 ações contra mim, nove delas penais, com base na recentemente extinta Lei de Imprensa da ditadura militar, e cinco cíveis, de indenização.
O objetivo era óbvio: inverter os pólos, fazendo-me passar da condição de vítima para a de réu. Mas como conseguir essa magia? Em quatro ações os irmãos Maiorana me acusavam de caluniador, difamador e injuriador por haver dito que fui espancado, quando, na verdade, segundo eles, fui ‘apenas’ agredido. Com base numa diferença que não consta do léxico nem dos códigos jurídicos, ainda pediram ressarcimento pelo dano moral que lhes causei com tal infâmia. Podia ter retirado meu rosto da direção do punho do agressor e não o fiz. Devo ter cometido delito de lesa-majestade.
Medo do índex
Kafkiano? Mais do que kafkiano. De um absurdo aviltante, ao qual parte da justiça paraense se tem prestado – e não apenas aos Maioranas, já que me condenou por ter chamado de pirata fundiário o maior grileiro de terras do Pará e do universo, condição provada pela própria justiça, que demitiu por justa causa todos os funcionários do cartório imobiliário de Altamira, onde a fraude foi consumada, colocando ao alcance do grileiro pretensão sobre ‘apenas’ cinco milhões de hectares. Ou sete milhões. No Pará, esbulho dessa monta não faz diferença. A terra dos direitos é rica.
Os poderosos, que tanto se incomodam com o que publico no Jornal Pessoal, descobriram a maneira de me atingir com eficiência. Já tentaram me desqualificar, já me ameaçaram de morte, já saíram para o debate público e não me abateram nem interromperam a trajetória do meu jornal. Porque em todos os momentos provei a verdade do que escrevi. Todos sabem que só publico o que posso provar. Com documentos, de preferência oficiais ou corporativos.
Por isso me entrego a uma enorme tarefa de investigação e checagem, que, com tantos processos, nunca mais pôde ser repetida na mesma amplitude, por absoluta falta de tempo, absorvido que sou, de forma crescente, pelos processos judiciais. Nunca fui desmentido sobre fatos, o essencial dos temas, inclusive quando os abordo pioneiramente, ou como o único a registrá-los. Não temo a divergência e a contradita.
O Jornal Pessoal deve ser a única publicação que reproduz as cartas recebidas na íntegra, mesmo quando elas visam me ofender. Tentam e não conseguem, porque minha vida está aberta a todas as perquirições e inquirições, e meus dados expostos ao interesse público. Felizmente, sempre pude responder aos ataques dos meus inimigos, que, sem a matéria prima da verdade, inventem, mentem ou manipulam. Mas não lhes calo a boca – com murros ou com o uso de leis iníquas.
Quando, em 1992, uma irmã do agressor propôs cinco ações sucessivas contra mim, o caminho das pedras se apresentou aos meus outros inimigos, que são os inimigos do povo, os manipuladores dos fatos, os seqüestradores da opinião pública, os agentes do roubo, do assalto aos cofres públicos, os autores das vilanias: a justiça. Bastaria propor seguidas ações contra mim, independentemente dos seus fundamentos e argumentos.
Desde então, fui processado 33 vezes. Isso, em pleno regime democrático, o mais duradouro de toda a história republicana brasileira. Durante a ditadura, fui processado uma única vez, pela terrível Lei de Segurança Nacional. Mas fui absolvido. Agora já fui condenado cinco vezes. Não me constranjo em dizer que fui condenado a um Gulag, que não assume essa feição porque fui colocado numa situação original: sou o jornalista que por mais vezes foi processado por uma única organização jornalística.
No total, os Maioranas me processaram 19 vezes, em todas elas confinando a controvérsia aos autos dos processos, guardados nos cartórios ou nos gabinetes dos magistrados, à distância do conhecimento público.
Nenhuma das sentenças que me foram impostas transitou em julgado porque tenho recorrido de todas elas e respondido a todas as movimentações processuais, sem perder prazo, sem deixar passar o recurso cabível, reagindo com peças substanciais. Mantive essa resistência mesmo sem contar com o apoio de escritórios organizados de advocacia.
Procurei oito deles quando Rosângela Maiorana Kzan propôs contra mim a primeira ação, em 1992. Nenhum aceitou. Os motivos apresentados foram vários, mas, a razão verdadeira, uma só: eles tinham medo de desagradar os poderosos Maiorana, como se fossem encarnação dos poderosos Prizzi, personagens de ficção.
Não queriam entrar no seu índex. Pretendiam continuar a brilhar em suas colunas sociais, merecer seus afagos e ficar à distância da sua eventual vendetta. Contei apenas com dois amigos, que se sucederam na minha defesa até o limite de suas resistências, com um tio, que morreu no exercício do meu patrocínio, e, agora, com uma prima, filha dele. Do outro lado, escritórios de advocacia estruturados, que vão em bloco para audiências e transitam com finura pelos gabinetes e corredores do fórum.
Rede que cresce
Apesar de tantas decisões contrárias, ainda sustento minha primariedade. Logo, não posso ser colocado atrás das grades, objetivo maior do emprenho dos meus perseguidores. Eles recorrem ao seu cinto de mil utilidades para me isolar e me enfraquecer. Não posso contar nem mesmo com o compromisso pela justiça da Ordem dos Advogados do Brasil.
Seu atual presidente nacional, o paraense Ophir Cavalcante Júnior, quando presidente estadual da entidade, firmou o entendimento de que sou perseguido e agredido não por exercer a liberdade de imprensa, o direito de dizer o que sei e o que penso, mas por ‘rixa familiar’. No entanto, dos sete filhos de Romulo Maiorana, criador do império de comunicações, só três me atacam, com palavras e punhos. Dos meus sete irmãos, só eu estou na arena.
Nunca falei da vida privada dos Maioranas. Só me refiro aos que, na família, têm atuação pública. E o que me interessa é o que fazem para a sociedade, inclusive no usufruto de concessão pública de canal de televisão e rádio. E fazem muito mal a ela, como tenho mostrado – e eles nunca contraditam. Acreditam que, me matando em vida e silenciando sobre tudo que fazem contra mim na permissiva e conivente justiça local, a história dessa iniqüidade jamais será escrita porque o que não está nos seus veículos de comunicação não está no mundo.
Não chega ao mundo porque o controlam, a ponto tal que tem sido vão meu esforço de fazer a Unesco, em parceria com a Associação Nacional de Jornais, incluir meu caso na relação nacional de violação da liberdade de imprensa. O argumento? Não se trata de liberdade de imprensa e sim de ‘rixa familiar’. O grupo Liberal, por mera coincidência, é um dos seis financiadores do portal Unesco/ANJ. Após os Maiorana, o dilúvio.
Eles equivocam-se. Desde que surgiu, o Jornal Pessoal tem registrado a história de Belém, do Pará e da Amazônia. Não a história dos press-release, dos balões de ensaio, dos enredos urdidos nos bastidores, da versão conveniente, da verdade comprada, mas a história fundada em fatos, naqueles fatos que muitos gostariam que permanecessem como monopólio de um grupo, justamente dos mais poderosos.
O Jornal Pessoal incomoda porque não foge – muito pelo contrário, procura – o teste de consistência do que diz, desafiando os contrariados a provar que o jornal errou. A maior glória do Jornal Pessoal é nunca ter sido derrotado no terreno que importa à história: o da verdade. A verdade não está em oferta no Google e continua a ser tão revolucionária quanto antes, seja na tessitura da Bíblia, que lhe reconhece a função libertadora, quanto na de Darwin, de Freud ou de qualquer outro intérprete dos sinais do seu tempo – e do tempo futuro.
O Jornal Pessoal tem pagado muito caro por se comprometer de corpo inteiro (o que, no seu caso singular, não é figura de linguagem) com a história ou, melhor dizendo, a contra-história de uma região que seus patronos e ‘padrinos’ tentam tornar uma repetição de outras histórias coloniais do mundo, no passado e atualmente.
Enquanto for possível, o Jornal Pessoal assumirá a posição da legendária Pasionária espanhola da Guerra Civil e se colocará diante dos malfeitores advertindo-os de que, se eles podem passar, graças à sua força, às suas palavras adornadas de ouro e seus muques, sua verdade não passará incólume. As páginas do Jornal Pessoal continuarão a ser preenchidas com o que o jornalismo é capaz de apurar e divulgar, mesmo que, como um Prometeu de papel, o seu ventre seja todo extirpado pelos abutres.
Eles são fortes, mas, olhando em torno, vejo que há mais gente do outro lado, gente que escreve o que pensa, apura sobre o que vai escrever e não depende de ninguém para se expressar, mesmo em condição de solidão, de individualidade, como os blogueiros. que hoje, generosamente, me acolhem nesta cidade que fiz minha e que tanto amo, como se estivesse na minha querida e amada Amazônia.
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Jornalista, editor do Jornal Pessoal