Dois milênios depois de um judeu subversivo criticar os fariseus de seu tempo em plena sanguinolência do Império Romano, observamos que todo aquele sistema corrompido, ainda amador à época, cresceu como uma erva daninha, se multiplicou, expandiu seu alcance e agora está estabelecido, disfarçado sob a forma de democracia e justiça. No Brasil, esse modelo é abundante e protege uma plêiade de representantes da nossa sociedade que ocupam cargos públicos, fazem o que fazem e assim continuarão, certos da impunidade garantida pelo Direito. Há juízes e liminares disponíveis para todo e qualquer criminoso que queira continuar mantendo essa condição, livre, leve e solto. Se a totalidade desse aparato legal é lastro para a sobrevivência desses párias, mais do que nunca, a grande personagem deste século, a mídia, tem a obrigação de expor as vísceras podres desses múltiplos órgãos falidos.
E aí entra a imprensa, que alterna bons e maus momentos, quando o clamor dos escândalos obriga qualquer um a reportar o caso de algum boi-de-piranha infeliz. Uma recomendação de João registrada em Apocalipse repetidas vezes, cai bem aos repórteres, editores, diretores de jornalismo e afins: ‘Quem tem ouvidos para ouvir, ouça.’ Mas ouvir o que? Ouvir que um programa predominantemente de humor como o Custe o Que Custar (CQC), com profissionais vindos de experiências desvinculadas do jornalismo oficial, tomou para si o papel da vigilância, investigação e cobrança pra cima desses funcionários públicos e políticos exemplares, por meio do quadro Proteste Já.
Repercussão insignificante
Barueri foi literalmente sorteada em matéria divulgada no programa, em março. Rubens Furlan, o prefeito, um digno cidadão, diante das evidências do desvio de uma TV de LCD doada pelo próprio CQC – que deveria ter ido para uma escola e foi parar na casa de uma funcionária –, mostrou com escancarada transparência a alma psíquica do fariseu moderno no Brasil. Simplesmente xingou inúmeras vezes, diante das câmeras, os repórteres do programa de babacas, palhaços, tontos, debochados, ironizou o ‘medo’ que ele tinha deles e ainda saiu com essa: ‘Lutei muito pela redemocratização do país para que vocês pudessem fazer as besteiras que vocês fazem.’
Mostrar que meia dúzia de funcionários da Secretaria de Educação do município, bem como o secretário Celso Furlan, irmão do prefeito nervosinho, não tinham como justificar o desvio da TV e inventaram uma esfarrapadíssima desculpa que envolve até um profissional chamado ‘sintonizador de TVs’ era a besteira que o programa fez. Rubens Furlan não xingou o programa, xingou, sim, o povo, as pessoas, os eleitores, o público, o telespectador, o Brasil inteiro, em rede nacional, na cara de todo mundo. Essa tranquilidade ao expor sua real condição sem constrangimento só foi possível porque o cara-de-pau está amparado pelo Direito. Ele sabe que nada vai acontecer com ele e nem ninguém por causa de desvio da TV, um fato irrelevante, mas bem representativo da desonestidade e corrupção que acontece em âmbitos mais graves. Diante dos absurdos que estava ouvindo, o repórter Danilo Gentili fiou lá, desconcertado. O que ele podia fazer com um caso perdido daqueles? Mais do que expor a todo o Brasil? Xingar de volta? Chamar a polícia? Talvez, no impulso, poderia ter, sei lá, urinado então no prefeito (!?). O programa, que chegou a ser impedido pela ‘Justiça’ de ser veiculado durante uma semana, foi apresentado com enorme alvoroço por parte da equipe da Band, mas a repercussão na mídia em geral foi comparável ao insignificante destaque dado pela Globo no caso de estupro de uma menor envolvendo o filho de um diretor da RBS em Florianópolis, filiada à emissora carioca. Ou seja, destaque nenhum.
Um exército de Varelas
Foi-se o tempo em que uma capa de revista, uma matéria bem escrita no jornal, cheia de trechos de grampos, entrevistas, delações e fotos, eram suficientes para enquadrar alguém, dando início a um processo de investigação ou algo que o valha. É preciso que existam milhares de CQCs por aí, à solta, em TV aberta, andando com suas câmeras em Brasília, em pequenas e grandes cidades, aterrorizando os corruptos do povo. Uma vez por semana, num Fantástico, e olhe lá (quando não resolvem gastar o programa todo com Fiuk entrevistando adolescentes desinteressantes) ou num CQC de segunda-feira, é muito pouco para iniciar uma cultura: ‘Não sejamos corruptos pois podemos estar sendo televisionados.’
A imprensa ainda não percebeu que é preciso martelar todos os dias casos como esses de Barueri, deixando que as ações deles mesmos os humilhem publicamente. Que cresça essa tendência na programação da TV brasileira, que o Marcelo Tas, já fazendo escola, consiga recriar um exército de seu antigo personagem repórter Ernesto Varela, precisamos dele cada vez mais!