Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O espetáculo da destruição não televisionada do mundo

Quando Hannah Arendt escreveu que o mal não se limita apenas a um regime político de exceção e nem muito menos se reduz a perfis humanos isolados, como Adolf Hitler, seu argumento era e é uma denúncia de que o mal é e está na banalidade vivida, experimentada e alimentada normalmente no dia-a-dia de nossas instituições. O mal é a normalidade ou, por outro lado, o modo como produzimos o considerado normal na esfera econômica, nas relações sociais diversas, inclusive nas amorosas, na família, na divisão social do trabalho, dos saberes, dos víveres viveres.

Hitler é, pois, a caricatura do dia-a-dia trivial em que habitamos e gestamos em nossas escolhas, ainda que acreditemos no sagrado direito de escolher o caminho do mal, pensando ser o do bem. Faz parte do panorama da trama cotidianamente perversa: normalizar o mal, cultivá-lo, desejá-lo, acioná-lo inocentemente.

O objetivo deste artigo é o de analisar como a banalidade do mal, na atualidade, inscreve-se em duas autodenominadas sociedades entrelaçadas, normalizadas e desejadas como as mais perfeitas e justas, as mais democráticas, as mais civilizadas. A perversidade do mundo atual reside precisamente no cotidiano colonizado, misturado e generalizado disso que chamamos de sociedade do espetáculo e sociedade civil, como indissociáveis blocos da construção do mal, no movimento mesmo de, ao juntá-los, estarmos inevitavelmente produzindo a trivialidade genocida de nossa época.

Autonomias hierárquicas

Em livro homônimo, Guy Debord define a sociedade do espetáculo, constituída por uma constelação sem fim de imagens sobre a vida, como uma parte que se apresenta como a civilização toda, razão pela qual vivemos num mundo invertido, no qual “a verdade é um momento do que é falso”, como a verdade de que uma imagem vale por mil palavras ou qualquer outra banalizada no espetáculo sem fim de uma sociedade invertida, na qual e através da qual enxergamos o mundo de cabeça para baixo, de modo que o que é falso é verdadeiro; o que é meia verdade é a verdade inteira; o que é a encarnação do mal é igualmente a imagem sagrada e trivializada do bem.

Assim como o mundo que produzimos não está invertido a partir de agora, mas desde sempre, se considerarmos as grandes civilizações, Guy Debord não ignora que as três principais características internas da sociedade do espetáculo – a separação, a autonomia e o isolamento – não são uma invenção da atualidade midiática, mas uma consequência previsível da modernidade capitalista, fundada na divisão social hierárquica do trabalho e dos saberes, base, tal divisão, da separação hierárquica de gênero, homem e mulher; heterossexuais, não heterossexuais; da separação étnica entre brancos, negros, índios, amarelos, miscigenados; ou da geográfica, tendo em vista a separação entre norte e sul; ou da epistemológica, bastando nos deter na hierarquia entre saberes formais e informais; com as suas respectivas separações internas em ciências naturais, humanas e artes; ou da separação linguística – inclusive da apartação entre padrão e não padrão; certo e errado – e de uma infinidade de outras separações hierárquicas.

Se produzimos uma sociedade em que nos separamos uns dos outros, em todas as dimensões da vida, consequentemente, também, somos responsáveis pela construção de autonomias igualmente hierárquicas, pois cada separado produz sua própria história autônoma como banalizada tendência geral: a mulher e suas políticas afirmativas autônomas, assim como as sexualidades não heterossexuais; assim como a autonomia das ciências humanas em relação à das ciências da natureza; do manual e do teórico; do formal e do informal.

A extinção do direito de viver com dignidade

É por isso que, autônomos e autômatos, nos isolamos uns dos outros, num contexto em que a luta passa a ser entre autonomias separadas umas das outras; a luta para que uma delas – ou um aglomerado de algumas delas – se torne hegemônica e se apresente como a totalidade do mundo, razão pela qual é possível dizer que nossa civilização está de cabeça para baixo, porque vivemos como se um lado fossem todos os lados orquestrados e potencializados.

Para Guy Debord, a sociedade do espetáculo, a nossa, é esta em que todas as separações, todas as autonomias e todos os isolamentos produzidos anteriormente continuam como sempre foram – separados, autônomos e isolados – embora, eis a sutil evidente diferença, norteiam-se, hoje, de uma solar referência “comum”, igualmente separada, autônoma e isolada: a sociedade do espetáculo, que passa e passará cada vez mais (claro que outro mundo é possível!) a ditar as regras e identidades de todas as formas de separação, autonomia e isolamento, as de gênero, de saberes; as étnicas; todas, sem exceção.

É por isso que é possível afirmar que a sociedade do espetáculo é o lugar por excelência da banalidade do mal, na atualidade, porque se tornou um caso de separação, de autonomia e de isolamento que alimenta e retroalimenta, sem cessar, como totalidade invertida, todas as outras separações, autonomias e isolamentos precedentes, inclusive as separações, autonomias e isolamentos existentes no campo da jurisprudência, como as relativas aos direitos econômicos, sociais, políticos, civis.

E é precisamente no campo da separação, autonomia e isolamento das e entre as mais variadas formas de direito – reguladas por nossa atual separada, autônoma e isolada jurisprudência – que a sociedade do espetáculo produz e torna normal a banalizada perversidade de nossa época; e o faz engolindo e submetendo totalmente os direitos civis não apenas se transformando neles, como separada, autônoma e isolada liberdade de expressão, mas antes de tudo igualmente separando-os e isolando-os, ao mesmo tempo em que, de forma invertida, metamorfoseia-os em única forma de direito mundialmente aceita e desejada, como o direito dos direitos ou o lugar religioso do nosso momento do falso, visto e concebido como a verdade a partir da qual tudo é justificável, inclusive a usurpação dos direitos econômicos, sociais, políticos ou simplesmente a extinção do direito de viver com dignidade plena.

A verdade é a produção de crítica literária

Como separada, autônoma e isolada esfera totalizadora de nossa época, a sociedade do espetáculo se constitui como o epicentro espetacular da sociedade civil, restringida ao campo exclusivo dos direitos civis, visto que separados, autonomizados e isolados das outras formas de direito.

Eis o lugar do mal banalizado do mundo contemporâneo, tanto mais perverso, invertido e trivial quanto mais toma para si a sociedade civil, entendida e vivida de forma separada, autônoma e isolada no campo exclusivo dos direitos civis, de tal sorte que todos os outros direitos, principalmente o econômico, passam a ser silenciados, evitados ou vistos como anacrônica dimensão defendida por mal-humorados marxistas, que ainda não foram igualmente tomados pela totalização generalizada e espetacular dos direitos civis da separada, autônoma e isolada liberdade de expressão.

É inacreditável a dimensão totalizadora que tomou e toma cada vez mais este nosso momento do falso como verdade geral do casamento entre sociedade do espetáculo e sociedade civil, razão pela qual nem mesmo a universidade pública está livre da produção separada, autônoma e isolada de filhos falsos dessa estonteante verdade, uma vez que, cada vez mais, produzimos teorias e axiomas científicos investidos da crença de que os direitos civis são a única fonte permanente da verdade.

Em minha área, por exemplo, da Literatura Comparada e Teoria da Literatura, a verdade, como invertido momento atual do falso, é a produção de crítica literária – as que têm prestígio – que concebe boa literatura como liberdade expressiva exclusiva ao campo dos direitos civis, com a consequente tendência a menosprezar toda produção literária – narrativa de ficção e poemas –, que, sem desconsiderar o campo dos direitos civis, também incorpora a dimensão dos direitos econômicos e sociais, por exemplo.

Os direitos civis e os outros direitos

É igualmente no contexto do casamento entre sociedade do espetáculo e civil que é possível constatar a separada, autônoma e isolada militância de boa parte disso que chamamos de sociedade civil, tal que nos pareça perfeitamente normal que maconheiros possam se manifestar nas ruas pelo livre uso da maconha, sem, incorporar, em suas demandas, uma agenda político-econômica que considere, por exemplo, o massacre indígena, senão por solidariedade, ao menos em respeito aos primeiros cultivadores da erva isoladamente tão amada.

Se não é por causa de nossa submissão ao espetacular separado, autônomo e isolado, como totalidade civil do mundo, como não considerar que fantástico seria – pela alegre afirmação da vida – que a marcha do orgulho gay, pelo mundo afora, além de se afirmar orgulhosamente, como diferença – e não como anormalidade –, em relação ao padrão heterossexual, também elegesse temas de interesse da humanidade inteira, para igualmente afirma-los como fundamentais para a constituição de um mundo de verdadeiro respeito às diferenças, como a afirmação da paz – logo a denúncia das guerras imperialistas – ou como a afirmação de um mundo sem fome, só para mencionar dois temas fundamentais para todos nós, independente de nossas diferenças e opções sexuais.

Por que parece que estamos condenados à separação, à autonomia e ao isolamento? Por que temos que nos manifestar, teorizar, lutar, viver, enfim, invertidos, sem conectar um direito a outro; uma diferença a outra; coletivamente, civilmente, economicamente, socialmente, alegremente?

Por que temos que separar os direitos civis dos outros direitos, se somos seres integrais, quando olhamos e vivemos a vida a partir do rés-do-chão e quando, portanto, constatamos que somos potencialmente um mesmo, diverso mundo, tanto mais plenos de direitos e liberdades, quanto mais todos formos comumente iguais e diferentes, sem privilégios, sem separação, autonomia e isolamento espetaculares?

Uma agenda revolucionária comum

Que supremo momento do falso é o atual em que a pobreza, o abandono e a miséria se transformam ou tendem a ser valorizados a partir do prisma separado dos direitos civis? O orgulhoso direito civil de ser pobre? Existe, por acaso, banalidade mais pervertida que esta: a liberdade de expressão de ser pobre?

Separado de tudo o mais, a sociedade civil se transforma no mundo todo: a dimensão econômica, é sociedade civil; a cultura é sociedade civil; a educação também o é; e assim a saúde; e igualmente o pobre e o rico, além das diferenças de gênero, de etnia; tudo é sociedade civil espetacularmente livre para expressar seus respectivos isolamentos.

 Tudo é sociedade civil livre para incluir-se na sociedade do espetáculo e tornar-se isoladamente espetacular. Tudo é legítimo e esteticamente lindo, quando assim se manifesta, como separada liberdade de expressão de si mesmo e, por outro lado, tudo é ilegítimo quando eticamente conecta um isolamento a outro e se manifesta destituindo a hierarquia entre as autonomias de ricos, em relação a pobres, do norte em relação ao sul, do heterossexual em relação ao homossexual; do padrão linguístico em relação ao não padrão.

O totalitarismo espetacular do mundo contemporâneo é, pois, o espetáculo invertido de uma sociedade civil constituída por diversidades isoladas, desconectadas, tanto mais espetaculares e esteticamente legítimas, quanto mais forem incapazes de produzir a ética de uma agenda revolucionária comum, fundada na urgência civilizatória de superar a separação a que estamos condenados, no capitalismo-mundo, a fim de, sob o signo da igualdade, superar o capitalismo, em benefício de uma humanidade conectada na rede mundial, e mesmo cosmológica, da infinita liberdade de expressão de cada qual, tal que cada qual, sem exceção, tenha dignidade e segurança econômica e possa, livremente, entregar-se à comum vida planetária, humanas e não humanas, sem destruí-las, assassiná-las, humilhá-las, roubá-las.

O cúmulo da burrice

Só assim evitaremos a extinção da vida humana, porque separados, autônomos e isolados, somos monstruosos, sanguinários, perigosos, vis assassinos, razão pela qual merecemos mesmo o que estamos fazendo conosco, de forma acelerada, no capitalismo civilmente espetacular, a saber: merecemos mesmo imbecilmente nos extinguir, como espécie, nos matando em separadas guerras isoladamente humanitárias, antes que acabemos irresponsavelmente com a vida na Terra.

É para isso precisamente que o casamento da sociedade do espetáculo com a sociedade civil se deu, no capitalismo atual: para nos inviabilizar; para que naturalizemos e banalizemos, como civilizados separados, autônomos e isolados seres espetaculares, a barbárie das guerras humanitárias, que nada mais são que guerras contra os direitos econômicos, sociais, políticos e soberanos dos povos do mundo; que nada mais são que guerras espetaculares a nos extinguir, aceleradamente – via-satélite –, ainda que, invertidos que estamos, achemos que somos civilmente mais fortes, destemidos, vivos, pois o cúmulo da burrice, como totalitário momento do falso, é quando nos autodenominamos como seres inteligentes, imagem e semelhança de Deus para, por consequência, transformar a civilização em barbárie, o progresso em regresso, a vida em morte, a ciência em armas de dominação, a estilizada liberdade civil de poucos em momento da verdade atômica da não televisionada destruição de tudo.

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[Luis Eustáquio Soares é poeta, escritor, ensaísta e professor da Universidade Federal do Espírito Santo]