“Não é vulgar uma pequena notícia ser afectada por tantas imprecisões, omissões ou falhas de rigor como as que várias leitoras apontaram à peça intitulada ‘Quase um terço dos bolseiros apoiados pelo Estado não provou que fez o doutoramento’, publicada na edição on line deste jornal no passado dia 23 de Junho. Tudo indica, no entanto, que foi isso mesmo que sucedeu, com a agravante de nada ter sido corrigido ou esclarecido até hoje, apesar de numerosas chamadas de atenção por parte de leitores mais atentos.
Vou procurar resumir aqui [na edição em papel do PÚBLICO] o essencial do caso, remetendo para o meu blogue [ver abaixo] a argumentação detalhada constante das reclamações que me foram enviadas pelas leitoras Patrícia Dias da Silva, Mariana Ricca e Rita Campos, bem como a explicação que recebi do jornalista João d’Espiney, autor do texto criticado. E registo que a notícia em questão não foi publicada na edição impressa, o que se estranha face à relevância que o seu título sugere, mas que admito poder ter resultado de uma vigilância editorial que estará a ser descurada na edição para a Internet.
A peça questionada pelas leitoras citadas noticia um relatório da Inspecção-Geral de Finanças (IGF) sobre a acção social escolar no ensino superior, em que à comunicação dos resultados de uma auditoria aos auxílios públicos nessa área (nomeadamente bolsas de estudo) se acrescentam, de modo no mínimo pouco claro, elementos sobre as despesas de investimento na área da ciência e tecnologia (nomeadamente bolsas para doutoramento). Pude confirmar que a redacção desse relatório é pouco cuidada, propiciando alguma confusão entre bolsas de natureza totalmente distinta. No entanto, pelo modo como foi construído, o texto publicado não só não esclarece essa confusão como a agrava, contribuindo para inquinar as conclusões a retirar sobre um tema indiscutivelmente relevante.
Lê-se na notícia, logo a abrir, que ‘quase um terço dos bolseiros que receberam apoio para o seu doutoramento em 2009 ‘não cumpriram com a obrigação de envio de cópias das teses’’, e cita-se a IGF para anunciar estarem em causa ‘1432 bolseiros’ e ‘apoios de 91,2 milhões de euros’. A divulgação de números como estes contribui naturalmente para uma percepção pública muito negativa da condução da política de fomento da investigação científica, como logo se verificou com alguns dos comentários publicados junto à notícia na edição on line, lamentando o desperdício de ‘dinheiros públicos’ ou sentenciando que, assim, ‘não admira que o país não cresça e não produza’. Um ‘anónimo de Lisboa’ apressou-se a censurar ‘o regabofe de andar a distribuir bolsas só para compor estatísticas’ e acusou os que andam ‘a tirar doutoramentos sem qualquer utilidade’ de o fazerem ‘à custa do zé contribuinte’.
Acontece que tão tremendas conclusões — que põem em causa a honorabilidade de muitos investigadores e a reputação da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), que é a entidade que promove estes apoios à investigação — assentam, segundo os esclarecimentos que me chegaram, em pressupostos falsos ou equívocos lamentáveis, para além da já referida confusão entre diferentes tipos de bolsas. A afirmação em que se baseia o título da notícia —’quase um terço dos bolseiros que receberam apoio para o seu doutoramento em 2009 ‘não cumpriram [sic] com a obrigação de envio de cópias das teses’’ — choca desde logo com o facto de as bolsas serem geralmente concedidas para um período até quatro anos e sujeitas a mecanismos de controlo anual, o que retira fundamento à ideia de que, em 2011, os beneficiários estariam a faltar a uma obrigação que não teriam de cumprir senão dois anos depois. Acresce que tal obrigação nem sequer existe: o envio das teses à entidade financiadora, que na peça se confunde com a comprovação do doutoramento, cabe às instituições que conferem o grau académico, e não aos bolseiros. É certo, como mostram as queixas das leitoras, que a expressão ‘bolseiros que receberam apoio para o seu doutoramento em 2009’ pode dar lugar a interpretações diversas, mas é igualmente certo que nenhuma delas permite sustentar com algum rigor o título escolhido ou o número nele referido.
O autor da notícia reconhece que ‘os leitores têm razão quanto aos erros informativos’ e acrescenta: ‘ Sem querer desculpá-los, o facto é que me limitei a transcrever as conclusões de uma auditoria da Inspecção-Geral de Finanças, que a mesma resumiu no relatório de actividades de 2010’. É uma explicação a que a leitora Mariana Ricca objecta por antecipação: ‘Dir-me-ão que no artigo apenas se limitaram a relatar as conclusões de um relatório da IGF. Eu direi ‘muito bem’, mas isso não é jornalismo. Se apenas querem relatar as conclusões do relatório indiquem onde se pode encontrar o dito. (…) A objectividade jornalística não é posta em causa por se questionar a realidade e os relatórios de auditorias. O jornalista (…) poderia, por exemplo, ter procurado alguns desses 1432 bolseiros (…) ‘, ou ter dado ‘uma vista de olhos pelo regulamento das bolsas’.
Escreve ainda João d’Espiney: ‘Sendo certo que a informação disponibilizada suscitou algumas dúvidas, desde logo por não referir a entidade auditada, o facto é que à hora em que peguei nesta parte do relatório (já eram quase 21 horas) já não estava ninguém na assessoria de comunicação do Ministério das Finanças, e a IGF, por norma, não fala com os jornalistas’. O que me reconduz à questão que aqui tenho repetidamente levantado, sobre a pressa incompreensível de colocar em linha informações que não foram devidamente verificadas, com evidente prejuízo para a imagem de qualidade de que o jornal se reclama. Para mais, quando a informação em causa ‘suscitou algumas dúvidas’.
E deveria, em boa lógica jornalística, ter suscitado muitas mais, antes de se afirmar o que se afirmou assertivamente em título. Socorro-me do que escreveu a leitora Rita Campos: ‘A parte do texto que se refere às bolsas de doutoramento e ao suposto incumprimento dos bolseiros é omissa em questões importantes. (…) A auditoria de 2009 diz respeito a todos os bolseiros a quem foi atribuída bolsa de doutoramento ou apenas aos que já teriam acabado de receber a bolsa? Assumindo que se tratava deste último caso, os bolseiros já marcaram as provas ou defenderam o seu doutoramento? Ainda partindo do princípio de que se trata apenas de bolseiros que deveriam ter acabado o seu doutoramento em 2009, quantos destes desistiram e quantos têm o seu trabalho atrasado (situação mais comum)? Se desistiram ou têm o trabalho atrasado, qual a posição dos seus orientadores, responsáveis pelo acompanhamento do plano de trabalhos e pela renovação anual das bolsas? E da entidade financiadora?’. A estas e outras perguntas que serviriam neste caso concreto para exemplificar o que deve ser a atitude jornalística perante uma informação de partida (oficial ou não), o PÚBLICO não respondeu. Nem a 23 de Junho nem depois.
O que me leva ao que considero ser o aspecto mais grave deste caso. Ao longo do próprio dia 23 e nos dias seguintes, dezenas — sim, dezenas — de leitores utilizaram o espaço de comentários do Público Online para reagir a esta peça, apontando erros, corrigindo imprecisões e levantando dúvidas sobre o que fora publicado. No seu conjunto, essas mensagens representam, como qualquer leitor que se disponha a consultá-las poderá comprovar, uma crítica demolidora à qualidade da peça sobre os bolseiros. Mas revelam também, da parte de muitos leitores, uma atitude generosa de cooperação com o jornal, na correcção de erros e na busca do rigor informativo. Já aqui referi, a propósito de outro caso: ‘A atenção crítica dos leitores é um valor precioso, que é desperdiçado se os seus comentários não forem lidos e transmitidos em tempo útil. Uma notícia deficiente ou um título errado devem ser corrigidos logo que possível, e as correcções devem ser assinaladas’.
É essa a pergunta que se impõe: ninguém, na redacção do PÚBLICO, reparou nessa torrente de mensagens pondo em causa uma notícia? Ninguém as leu (o que seria contraditório com a regra de moderação dos comentários)? Ninguém reflectiu? Ninguém avisou? Ninguém considerou necessário confirmar as abundantes informações que continham? Ninguém concluiu que a notícia deveria ser corrigida e, sobretudo, que passava a ser dever do jornal investigar devidamente o tema, de acordo com regras de qualidade informativa? Se ninguém o fez, só posso constatar que tal significa, na hipótese mais benévola, falta de consciência do respeito devido aos leitores. E fazer minha a interrogação de um desses comentadores: ‘Quando é que o PÚBLICO corrige (retira) um título de notícia manifestamente errado?’.
Concordando com a sugestão da leitora Rita Campos, de que as deficiências da peça de 23 de Junho e a relevância do tema justificam a elaboração de um novo texto, que retrate com rigor o que se passa com as bolsas de doutoramento, João d’ Espiney diz que ‘isso só não aconteceu porque a FCT ainda não respondeu, até ao momento, a um conjunto de questões [colocadas na passada segunda-feira] no sentido de obter todos os esclarecimentos sobre o assunto’. Esperando que essa dificuldade seja rapidamente ultrapassada, devo ainda assim observar que um melhor aproveitamento da ajuda prestada pelos seus leitores já deveria ter tornado possível a um jornal diário como o PÚBLICO emendar, em aspectos relevantes, um erro informativo que está exposto há dez dias na Internet.”