Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Primatas, antropoides ou hominídeos?

Qual dos seguintes termos descreve melhor a posição que a espécie humana ocupa na escala zoológica: primata, antropoide ou hominídeo?A pergunta, que pode soar estranha ao leitor familiarizado com a sistemática biológica, me veio à cabeça após a leitura de dois artigos sobre a história evolutiva dos primatas, ambos publicados na prestigiosa Ciência Hoje On-line, a saber: “Mais um ramo em nossa árvore evolutiva”, de minha autoria (no ar desde 18/10), e “Nova pista sobre a origem dos antropoides”, de Thaís Fernandes (no ar desde 27/10).

Como os termos “primata”, “antropoide” e “hominídeo” aparecem repetidas vezes em um ou ambos os artigos, sem terem sido, no entanto, claramente definidos, surgiram alguns mal-entendidos. Alguns leitores parecem ter ficado com a impressão de que o artigo mais recente (doravante referido como artigo 2) seria uma atualização ou mesmo uma correção do que apareceu antes (artigo 1). Tal interpretação, no entanto, não se justifica. Ainda que ambos os artigos abordem aspectos relacionados à história evolutiva dos primatas, um trata de restos fósseis (idade estimada entre 1,7 e 2 milhões de anos) de um primata hominídeo, enquanto o outro lida com restos fósseis (38-39 milhões de anos) de quatro espécies de primatas não-hominídeos(três espécies de linhagens extintas de haplorrinos e uma espécie de uma linhagem de estrepsirrino lorisiforme – ver adiante).

De resto, vale ressaltar o seguinte: embora as espécies viventes que são classificadas em um mesmo grupo taxonômico possam ser genericamente rotuladas de “parentes próximos”, não costuma haver entre elas uma relação direta de ancestralidade e descendência. No caso dos seres humanos, por exemplo, isso significa dizer que, embora todas as demais espécies viventes de primatas possam ser genericamente rotuladas de “nossos parentes mais ou menos próximos”, nenhuma delas representa um “ancestral” da espécie humana.

Os primatas

Em termos puramente zoológicos, todas as espécies (viventes ou fósseis) conhecidas de primatas estão reunidas em uma única ordem de mamíferos. O nome científico da ordem (Primates) foi cunhado por Carl von Linné (1707-1778) – também conhecido como Carolus Linnaeus ou simplesmente Lineu –, o criador da nomenclatura biológica que usamos ainda hoje. O termo deriva da palavra latina primus, que significa “primeiro” ou “em primeiro lugar”, e foi usado para designar o grupo que, na opinião do autor, ocuparia a posição mais “alta” dentro do reino animal.

Ao longo da vida, Lineu descreveu e nomeou formalmente pouco mais de 40 espécies de “primatas”, as quais foram arranjadas por ele em quatro “gêneros”: Homo (seres humanos e chimpanzés), Simia (macacos do Novo e Velho Mundo), Lemur (“prossímios” e um lêmure-voador, este transferido posteriormente para a ordem Dermoptera) e Vespertilio (morcegos, colocados depois em uma ordem própria, Chiroptera).

Desde então, já foram descritas e nomeadas outras espécies, de sorte que a ordem conta hoje com cerca de 380 espécies, a maioria encontrada exclusivamente em hábitats tropicais. O número de espécies fósseis conhecidas é ligeiramente superior, com um detalhe importante: a diferença em favor das espécies fósseis deve continuar aumentando, na medida em cedo ou tarde “todas” as espécies viventes serão descritas (ou desaparecerão), enquanto restos fósseis de espécies extintas continuarão a ser encontrados.

Como um grupo, os primatas têm sido objeto de estudos e preocupação por parte de muitos cientistas, alguns dos quais trabalham na reconstituição da filogenia de todas as espécies (viventes e fósseis) conhecidas do grupo. Há um motivo especial para que o trabalho desses estudiosos chame tanto a atenção do público: reconstituir a história evolutiva desses animais implicaria, entre outras coisas, em um melhor conhecimento da história evolutiva de nossos ancestrais imediatos e, quem sabe, de nossa própria espécie.

Relação de pertinência

Na opinião dos estudiosos, os sistemas de classificação devem ser construídos de modo a refletir o que conhecemos a respeito da filogenia das espécies que integram as diferentes linhagens de seres vivos (primatas, mamíferos, cordados etc.). Levando em conta esse princípio, eis o resumo de uma possível classificação para os vários subgrupos (acima do nível de família) em que estão arranjadas as 376 espécies viventes da ordem Primates:

1. Subordem Strepsirrhini: sete famílias; 23 gêneros e 88 espécies.

1.1. Infraordem Lemuriformes: lêmures e espécies próximas; quatro famílias; 59 espécies.

1.2. Infraordem Chiromyiformes: ai-ai; uma família; uma espécie. (Alguns autores incluem o ai-ai na infraordem Lemuriformes.)

1.3. Infraordem Lorisiformes: lórises, gálagos e espécies próximas; duas famílias; 28 espécies.

2. Subordem Haplorrhini: seis famílias; 46 gêneros e 288 espécies.

2.1. Infraordem Tarsiiformes: társios; uma família; sete espécies.

2.2. Infraordem Simiiformes: antropoides; cinco famílias; 281 espécies.

2.2.1. Parvordem Platyrrhini: macacos do Novo Mundo; duas famílias (alguns autores subdividem em cinco famílias); 128 espécies.

2.2.2. Parvordem Catarrhini: macacos do Velho Mundo e hominídeos; três famílias; 153 espécies.

Um exame desse esquema de classificação mostra que os termos “hominídeos”, “antropoides” e “primatas” estão associados a categorias taxonômicas de níveis hierárquicos distintos, havendo entre elas uma relação de pertinência. Assim, a família dos hominídeos (Hominidae), que abriga hoje sete espécies viventes (ver adiante), integra um grupo maior, a infraordem dos antropoides(Simiiformes), a qual, por sua vez, é uma das duas infraordens que integram a subordem dos haplorrinos (Haplorrhini). Esta última é uma das duas subordens que formam a ordem dos primatas.

Os valores numéricos citados mostram que cerca de três quartos de todas as 376 espécies são antropoides, contra um quarto de primatas não-antropoides. Das 281 espécies de antropoides, a grande maioria (274) é de não-hominídeos (macacos do Novo e Velho Mundo), enquanto apenas sete espécies viventes (duas espécies de orangotangos, duas de gorilas, duas de chimpanzés e os seres humanos) podem ser apropriadamente chamadas de hominídeos.

Parentes sim, ancestrais não

Podemos dizer então que todos os hominídeos são antropoides, assim como todos os antropoides são primatas. O contrário é que não é verdade: nem todos os antropoides são hominídeos, assim como nem todos os primatas são antropoides. Nós, seres humanos, somos, ao mesmo tempo, hominídeos, antropoides e primatas – uma afirmação que serve como resposta à pergunta do título.

Em uma árvore filogenética completa e perfeita – sonho que talvez jamais venha a ser concretizado –, nós seríamos capazes de identificar a linhagem que deu origem a todos os hominídeos. Recuando ainda mais no tempo, seria possível reconhecer o ancestral de todos os antropoides, assim como o de todos os primatas. Continuando a retroceder, conheceríamos o ancestral de todos os mamíferos, o de todos os animais e, por fim, quem sabe, o último ancestral comum a todos os seres vivos.

Todos os demais primatas (viventes ou fósseis) podem ser genericamente referidos como “nossos parentes mais ou menos próximos”, afinal partilhamos de ao menos um ancestral comum com todos eles. Não faz sentido, porém, chamar qualquer outra espécie vivente – seja de primata, antropoide ou hominídeo – de “nosso ancestral”. Nossos ancestrais já desapareceram e, embora seguramente pertencessem a uma linhagem de hominídeos (ou a mais de uma, de acordo com alguns estudiosos), a identidade específica deles ainda não foi devidamente estabelecida.

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[Felipe A. P. L. Costa é biólogo, autor de Ecologia, evolução & o valor das pequenas coisas (2003)]