O campo da comunicação de massa é imprescindível ao processo de construção da cidadania política. Mas, temos que considerar que essa comunicação é constituída por discursos e, conforme adverte o linguista e doutor em Comunicação Milton José Pinto (2002), ‘os modos de dizer podem ser explicitados em modos de mostrar, de interagir e seduzir’ (p. 27). Pois bem. Os horários reservados à propaganda eleitoral gratuita na televisão e no rádio brasileiros podem ser ótimos objetos para esse exercício interpretativo sugerido por ele.
Ainda de acordo com Pinto, é preciso ter à disposição conhecimentos e técnicas de análise linguística e semiótica adequados a essa tarefa. O pesquisador da Comunicação e Cultura Jesús Martín-Barbero (1987) adverte que pensar a política a partir da comunicação significa colocar em primeiro plano os ingredientes simbólicos e imaginários presentes nos processos de formação do poder. Por essas e outras razões nunca foi tão pertinente a discussão acerca das novas configurações das eleições na sociedade midiatizada como agora, quando das campanhas veiculadas na televisão e no rádio (e principalmente na primeira). É inegável a estreita relação entre política e comunicação de massa, sobretudo se pensarmos em termos de visibilidade dos chamados atores ou agentes políticos.
Conforme Michel Foucault (1984) não podemos reconstruir um sistema de pensamento a partir de um conjunto definido de discursos, mas esse conjunto deve ser tratado de modo a nos permitir ir além dos enunciados, buscando a intencionalidade do sujeito falante, sua atividade consciente, o que quis dizer. Nessas palavras de Foucault está embutida a advertência de que não existe discurso livre de ideologia. É importante percebermos que a produção discursiva interfere nas relações sociais estabelecidas entre os sujeitos, pois quem constrói enunciados objetiva aceitação, credibilidade.
Comunicação ainda incipiente
Aristóteles, em sua Retórica, afirmou que mostrar-se a si mesmo sob determinado aspecto é fazer supor aos ouvintes que temos para com eles determinada disposição. Essas palavras de um filósofo da Antiguidade continuam tendo validade no mundo contemporâneo, posto que a retórica forma parte do jogo político. Na política contemporânea é condição sine qua non, entre outras questões, que os atores representantes da instância política joguem com as estratégias discursivas com a finalidade maior de construir o consenso. Para isso, em grande medida buscam parecer, conforme assinala o professor da Universidade de Paris-Nord Patrick Charaudeau (2005).
O professor da Universidade Federal das Bahia Wilson Gomes (2004) diz que o advento da televisão acarretou mudanças na atividades política atual e demandou a formação de novas competências e habilidades no campo político, salientando que, em consequência disso, as estratégias eleitorais pressupõem uma cultura política baseada principalmente no consumo de imagens públicas. Gomes afirma ainda que o processo de produção e de veiculação de imagens e de disputa pela imposição das imagens predominantes assumem posição de destaque na atividade estratégica da política.
A despeito da importância e inegável potencial da comunicação de massa na sociedade contemporânea, sua utilização nos processos eleitorais pode ser considerada (com raras exceções) incipiente, pois a quase totalidade da ênfase é dada aos processos de fabricação de imagens e de discursos que, em última instância, são apresentados como produtos a serem consumidos pelo(a)s eleitore(a)s/consumidore(a)s.
A retórica e a poética
Esta constatação nos força a refletir, de modo pessimista, sobre a função que atualmente exercem os meios de comunicação de massa nesses processos eleitorais. Isto porque as discussões importantes em torno das propostas que deveriam ser estruturadas pelo(a)s candidato(a)s – tanto aos cargos legislativos como também aos executivos – perdem lugar para a exposição exacerbada de imagens/discursos pré-fabricados pois, como bem afirma Charaudeau (2005), ‘é preciso que o político saiba inspirar confiança, admiração, isto é, que saiba aderir à imagem ideal do chefe que se encontra no imaginário coletivo dos sentimentos e das emoções’ (p. 81).
Charaudeau nos adverte ainda que o discurso político não se pauta mais pelo conteúdo das ideias, mas pela simulação. O também teórico francês Gilles Lipovetsky (1990) complementa esse pensamento quando diz que o discurso político, ao ser construído de forma espetacular, torna-se menos enfadonho e, em consequência, aqueles que não se interessam por ele podem encontrar algum interesse – mesmo que seja no político, alimentado entre outras cosas pelo que ele denominou de o ‘show do homem na arena’.
Considerando essas assertivas devemos atentar para o fato de que, na contemporaneidade, o espetáculo assumiu tal protagonismo que torna-se imprescindível analisar as questões referentes ao campo político levando em conta essa característica. E para dar conta do simulacro muitas vezes os discursos políticos são apresentados cheios de recursos espetaculares, colocando em evidência a lógica dos meios de comunicação de massa e também a lógica da publicidade.
Conforme o professor Wilson Gomes a retórica e a poética são imprescindíveis à política porque produzem representações, espetáculos teatrais. Ele diz ainda que enquanto a retórica produz um efeito persuasivo, a poética produz efeito emocional. Tomando como base essa afirmação e usando como exemplo a propaganda eleitoral gratuita na televisão podemos citar vários modelos de discursos espetacularizados.
Modos de dizer e de seduzir
Nesta reflexão, vejamos dois exemplos a partir de discursos veiculados em programas de José Serra (PSDB) e de Dilma Rousseff (PT), candidatos à Presidência da República nas eleições 2010, ambos referentes à temática saúde pública.
Em um dos seus programas, o candidato ‘tucano’ José Serra coloca em evidência uma suposta cidadã que venceu o câncer de mama por conta do tratamento dispensado por um hospital público, revelando, assim, conforme a propaganda do PSDB, o compromisso deste partido e do seu candidato com a saúde pública. As palavras e a ênfase dadas à imagem da referida cidadã/eleitora não fazem mais do que construir um cenário espetacular no qual, conforme a afirmação de Gomes, a retórica serve para persuadir e a poética para produzir emoção. Quantas pessoas/eleitore(a)s não se emocionam com aquela cena? Todavia, por outro lado, a história de êxito que ilustra a propaganda peessedebista contrasta com inúmeras histórias cotidianas contadas através dos próprios meios de comunicação de massa que mostram, em todo o país, tragédias vividas por cidadãos e cidadãs ao buscarem atendimento na rede pública de saúde. É bom lembrar que candidato Serra foi titular do Ministério da Saúde e o seu partido, o PSDB, governou por dois mandatos consecutivos. Mas o ‘tucano’ prefere produzir um discurso espetacular em vez de explicitar para o(a) eleitor(a)/espectador(a) quais as estratégias que pretende utilizar para dotar o Brasil da infraestrutura em saúde pública de que o país necessita. No referido programa, toda a ênfase é dada ao caso da ex-paciente e à sua cura.
A candidata petista Dilma Rousseff também tomou a saúde como prioridade (para os seus discursos). Em um dos programas produzidos para sua campanha na Bahia, Rousseff enfatiza a construção do Hospital Estadual da Criança no município de Feira de Santana, local onde esteve presente e conversou com médicos sobre a importância da obra. É interessante salientar, no entanto que, embora muito pertinente, a construção de um único hospital infantil em um estado com 417 municípios pouco representa se levamos em conta as reais necessidades da população baiana, hoje estimada em aproximadamente 14 milhões de habitantes, sobretudo considerando os quase oito anos de mandato petista junto ao governo federal, somados a quase quatro no governo do estado. O programa dá saliência, também, às falas de supostos moradores da cidade sobre a satisfação em receber a referida obra e, em seu discurso, Rousseff ressalta que irá investir consideravelmente na saúde pública, coincidindo com o discurso do candidato adversário. Mas, da mesma forma, minimiza a principal discussão: suas estratégias para concretizar a promessa. É interessante ressaltar que no discurso a candidata petista ‘defende’, enfaticamente, o Sistema Único de Saúde (SUS) – e isso é constatável no referido programa –, embora seu tratamento contra o câncer não seja realizado em um hospital do SUS, mas em uma das instituições hospitalares mais luxuosas e caras do país.
A retórica era tão importante na Grécia que os filósofos sofistas transformaram a educação dos meninos gregos na arte ou técnica de ensinar a falar bem, de construir discursos persuasivos. Na Roma Antiga também não foi diferente. As escolas de retórica se proliferaram e estavam comprometidas, principalmente, com a preparação de rapazes para a vida pública. E na atualidade a retórica não assume importância menor, principalmente com o auxílio dos meios de comunicação de massa e dos aparatos que os constituem. Em se tratando de discursos políticos, seu valor torna-se ainda maior, pois para persuadir os receptores aqueles que constroem os discursos políticos necessitam captar seu imaginário, construir inúmeras cenografias etc…
Considerando os aspectos desta reflexão, pode-se inferir que a comunicação midiática deve ser analisada a partir de um processo de questionamento particular e constante, qual seja o do estatuto do sujeito nos variados espaços que ele possa ocupar – seja como produtor, como ator, como receptor ou mesmo como produtor/receptor. Portanto, torna-se imprescindível, conforme adverte Pinto, desvendar os modos de dizer, os modos de interagir e os modos de seduzir.
******
Doutora em História e Comunicação no Mundo Contemporâneo pela Universidad Complutense de Madrid, professora da História da rede pública de ensino do estado da Bahia e professora dos cursos de Comunicação Social da Faculdade 2 de Julho, Salvador, BA