Já se tornou lugar-comum o despreparo de comentaristas da mídia em todos os níveis. Ler um jornal ou revista atualmente, em busca de norte para a navegação nesse ou naquele campo de cultura, é atravessar mar proceloso.
Muitos leitores não leem críticos ou preferem guiar-se pelo contrário do que dizem. Tal filme recebeu avaliação máxima? Melhor evitá-lo. Tal outro levou nocaute do crítico e jaz lá no pé da seção, vitimado por bordoada desferida em luta sem juiz? É melhor para o leitor dar atenção ao desventurado, pois pode tratar-se do único filme a merecer suas horas de cultura numa época em que o tempo é curto para tanta coisa.
Nada se diz de tal peça teatral? Convém conferir. No fundo das livrarias ou nos desvãos da internet, leitores e internautas encontram livros dos quais ninguém fez sequer um pálido registro? Talvez eles façam por merecer um olhar mais longo do que uma espiada.
Ruim para todos
O quadro aterrador não é muito diferente na música, nas artes plásticas, no cinema e em outras manifestações culturais e artísticas.
Quanto à literatura brasileira – ela deveria interessar a todos, é a única que expressa o brasileiro –, para ela o leitor não tem mais guias, embora boa parte das instâncias que o manipulam continuem dando excessiva importância a indicadores extraliterários, de que as listas dos mais vendidos são o exemplo emblemático.
As listas dos mais vendidos merecem algumas linhas. Digamos que elas medissem, não o fluxo de livros nas livrarias – escala necessária na viagem que faz o livro do editor ao leitor – mas as tendências de voto. O leitor aceitaria que as relações discrepassem tanto umas das outras, que algumas delas sequer citassem o candidato, afinal eleito no dia da votação?
Não. Haveria protestos de todos os lados. É que, no caso, seria enganar eleitores e esses já não podem mais ser enganados. Ao menos não pelas listas dos que estão à frente na disputa. Embora também nesse campo tenham ocorrido alguns tropeços, o povo brasileiro corrigiu os desmandos da votação. Foi ele quem, ao tornar-se eleitor, impediu diversas falcatruas, de larga tradição em nossa vida política. Os eleitores encontraram, principalmente na diversidade da mídia, no Ministério Público e na Justiça Eleitoral, as indispensáveis proteções à liberdade de escolha.
Essa conquista não se deu sem lutas. Em 1930, a República Velha receberia seu golpe de morte, desferido pela Revolução de 30. Não foi por acaso que estourou ali um dos mais belos movimentos literários, o romance de 30, que encontrou na sociedade então desamordaçada o caminho do palco, da visibilidade, do reconhecimento de um outro Brasil, até então confinado a diversos apagamentos, que veio a ser revelado e transfigurado, e agora jorrava nas páginas de escritores que logo se tornariam referências solares daquela virada.
Eram quase todos muito jovens e tinham como principal marca de seus romances um desesperado amor ao Brasil, a seus temas e problemas, a personagens calcados na vida que argutamente observavam e sabiam transformar em romances.
Jorge Amado publicou O País do Carnaval, aos 18 anos. Rachel de Queiroz lançou O Quinze, aos 20 anos. José Lins do Rego tinha 31 anos no ano de Menino de Engenho. Erico Verissimo publicou Clarissa aos 28 anos.
Dois deles eram menos jovens. Graciliano Ramos, que lançou Caetés em 1933, aos 40 anos, no ano seguinte publicava sua obra-prima, o romance São Bernardo.
É dominante na crítica que seu melhor romance é Vidas Secas. Como a de poucos outros, minha porção crítica discrepa. Vidas Secas é até cômodo, fixando-se na seca como o grande flagelo, ao passo que São Bernardo não economiza nada nas denúncias, não apenas sociais, das devastações que carcomem a condição humana, inclusive destruições psicológicas, seja dos empregados e agregados, seja de seus patrões. Numa boutade, o latifúndio é ruim para todos.
Em 1928, quando lançou A Bagaceira, José Américo de Almeida também rondava os 40 anos. (Estou escrevendo este artigo em Fartura, no interior de São Paulo, sem poder consultar meus amigos-livros em casa ou na Universidade Estácio de Sá, no Rio, e eles me fazem uma falta danada. Além do mais, como todos os que viajam, estou sendo vítima de outra trapaça: a internet 3G. Atenção, Ministério Público: sei que a luta de vocês é árdua e tem outras prioridades, mas aguardo alguma providência contra as operadoras que nos enganam com internet à lenha, a que chamam “3G”.)
Hospício decadente
O que houve depois do tremendo sucesso dos romancistas de 1930? Uma rearticulação de setores retrógrados e meio míopes que, auxiliados pela nascente universidade brasileira – sim, não existia universidade no Brasil – tomaram o Modernismo no colo e nunca mais cuidaram dos outros filhos da mãe-literatura. Aliás, ainda não fizeram o enterro do cadáver, que jaz em essa pública, em catafalco de todos visto, em cenotáfio choroso – em resumo, o Modernismo é um morto em eterno velório, que já demorou demais a ser enterrado.
Caramba! O Modernismo é o ponto final de qualquer programa escolar de literatura brasileira. Todos vão apenas até ali. O Modernismo é o finis terrae de nossas letras. E no entanto ano que vem ele completa 90 anos!
O boom que a literatura brasileira experimentou a partir dos anos 1960 e 1970 ainda não mereceu atenção. Nem da crítica, com raras exceções, nem da mídia. Antes atenta aos autores brasileiros, a mídia há pelos vinte anos ignora quem são nossos verdadeiros escritores, o que escrevem, quais são seus temas e onde estão homiziados. E em todos os gêneros eles mostram uma vigorosa, exuberante, criatividade em temas e personagens nunca dantes vindos às páginas literárias.
Atentos à produção literária estiveram em memoráveis jornadas profissionais como Geraldo Galvão Ferraz, Wladyr Nader e Wladir Dupont, que avisavam aos navegantes que tinham surgido novos escritores no Sul, no Norte, no Leste, no Oeste nos anos 1970 e 80. Para quem foram entregues essas editorias? Quem sucedeu Mário Pontes no Jornal do Brasil, Carlos Menezes no Globo, Antonio Hohlfedlt, Guilhermino César e Paulo Gastal no Correio do Povo, Danilo Ucha em Zero Hora, entre tantos outros?
Jornalistas especializados procuravam, com modéstia, inteirar-se do que estava acontecendo na literatura brasileira e, com independência, comentando o que tinham lido, lastreados por um saber feito na universidade ou fora dela, davam aos leitores verdadeiros guias de leitura. E numa linguagem que todos entendiam.
Há pelo menos vinte anos a crítica, quando acontece, está confinada à universidade. E o que de lá exala é preocupante, a começar pelos hagiológios e pelas condenações. O cânone literário faliu há décadas. Parece um hospício decadente. Lá está quem não deveria estar, pois que faleceram até os médicos que cuidavam deles. E para lá entrou quem não merecia ser ali albergado.
Outro negócio
Perguntado sobre a razão de não incluir certos autores italianos numa antologia, o escritor Giovanni Papini, sempre criativo, sagaz e mordaz, disse: “Minha antologia não é dormitório público”.
Se dissesse a mesma coisa no Brasil, seria chamado de censor e dele os ignaros, cada vez mais despreparados e mais vaidosos, diriam que tal escolha é censura, perseguição, raiva, algum sentimento menor. Por razão semelhante, Manuel Bandeira por pouco não ficou de fora de uma antologia da poesia brasileira.
Ele não ficou de fora, mas hoje os fazedores de resenhas ainda ignoram romancistas como Benito Barreto – bebê de um ano quando explodia o romance de 1930 – e agora de volta com três novos romances sobre a Inconfidência, depois de ter a extraordinária saga de Os Guaianãs ignorada por décadas. Tendo passado dos 80 anos, ao lado de Salim Miguel (também com novos livros lançados), também da geração que antecedeu a minha, parecem os grandes exemplos do brutal descaso que a mídia vem dedicando aos autores brasileiros, ajudada por quinta-colunas que na universidade só falam se podem repetir alguma coisa ou falar segundo algum pressuposto previamente aprovado por orientadores e membros de bancas examinadoras, os únicos a lerem seu trabalho crítico, e às vezes de forma equivocada.
E por que tudo isso impunemente? Porque somos um país de eleitores, mas ainda não somos um país de leitores.
Tudo é desanimador? Não. Para cada editor ou autor que se acovardou e não quer mexer na geleia geral, porque seu negócio não são mais as livrarias, mas as vendas aos governos, aqui e ali faíscam autores e críticos que vão nos salvar da grande catástrofe. É dever da mídia, não favor, dar atenção a eles e fazer o devido discernimento.
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[Deonísio da Silva, escritor e doutor em letras pela USP, é pró-reitor de Cultura e Extensão da Universidade Estácio de Sá e diretor de Relacionamento; seus livros são publicados no Brasil pela Editora Leya e Novo Século]